SALVADOR, BAHIA / BRAZIL – October 7, 2016: Bahia Military Police Shock Battalion agents approach men during operation in the Vale das Pedrinhas neighborhood in Salvador. *** Local Caption ***

Nasceu Antônio, como o santo, mas todos o chamam de Tony, como o Homem de Ferro. Não se parece com nenhum homem de ferro, mas também não suporta o próprio nome. Acha que é coisa de pobre. Prefere Tony. Mais chique. Mais american.

Acorda cedo e toma seu brunch. Sempre com brioches, geleia de damascos sírios e achocolatado belga. Na academia, se esforça sob o olhar leniente de seu coach. Às 10, vai para o trabalho. Lê números, gráficos e planilhas. Relatórios tediosos que falam de dinheiro ganho e dinheiro perdido, de coisas do governo e do estrangeiro que podem fazer ganhar ou perder dinheiro.

Longe do escritório de Tony, vive Antônio, que todos chamam de Toninho. Ou Tuninho. Acorda cedo. Toma café com pão. Manteiga, quando tem. Arruma a casa para ajudar a avó. Conserta uma coisa aqui e outra acolá na casa. Nas sextas, joga futebol. Hoje, iria para o trabalho. Precisaria estar lá às 8. Mas não deu. Às 5 e meia a favela já estava cheia de policiais. Tiros se ouviam lá e cá. Escolas fechadas. Comércio fechado. Tudo fechado. E Toninho fechado em casa, sem poder ir ao seu primeiro dia no novo emprego.

Tony foi almoçar com amigos no Chez Anette. Salmão feito no azeite trufado e salada à la provence. Experimentou um vinho desconhecido, sugerido pelo sommelier. Gostou, mas disse que não gostou muito, só para lembrar ao sommelier do seu lugar de subalterno.

A polícia invadiu a casa de Toninho na hora do almoço. “O que é isso?!”. Recebeu uma coronhada na boca de resposta. “Deita, vagabundo!”. Reviraram a casa. Jogaram coisas no chão. Quebraram outras coisas. “Cadê a arma, vagabundo? Cadê a droga?”. Perguntou o policial de preto com o fuzil apontado para a testa da avó de Toninho, que permanecia no chão, imóvel como um cadáver. “Não tem nada disso aqui não! Sou trabalhador”. Disse segurando o medo, o sangue e os dois dentes arrancados pela coronhada.

Entre um gole e uma garfada, a conversa fluía no Chez Anette. Falavam das coisas que se compra com dinheiro e do ganhar e perder dinheiro. “Estou preocupado com o desemprego, se diminuir vai ser um problema para a economia”. “Mas, pelo menos, ajuda muita gente a não passar fome”, ponderou o colega de mesa. “Que nada! Quem quer emprego neste país está empregado. O negócio é que essa gente é preguiçosa. Sem compromisso. Quer tudo de mão beijada. Olha, mês passado começamos e selecionar novos porteiros. Acabamos contratando um. Hoje seria o seu primeiro dia de trabalho e, adivinhe, faltou! É gente viciada em bolsa família. Está muito difícil encontrar pessoas comprometidas como nós”.

Antes de sair, um dos policiais jogou a panela de feijão no chão. Outro, chutou Toninho no rosto, arrancando mais sangue da boca. O terceiro, levou o dinheiro que encontrou na gaveta do armário. Era o que havia para passar o resto do mês. Foi preocupado ver sua avó. Estava pálida. Paralisada de medo. Queria levá-la ao médico, mas não tinha como. Havia o tiroteio, não tinha mais dinheiro e o posto de saúde, com certeza, estava fechado também.

A notícia da operação policial na favela chegou à mesa do Chez Anette. A imagem de um helicóptero dava conta do tamanho do engarrafamento, que o repórter descrevia em quilômetros. “Que coisa horrível! Vou acabar perdendo meu voo de hoje à tarde por causa disso”. “As coisas por aqui estão cada vez mais difíceis”, comentou um dos comensais, enquanto pedia ao sommelier a sugestão de um vinho que harmonizasse com a sobremesa.

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Ilustração: Mihai Cauli
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