O apagar das luzes

Vivemos uma época em que a transição energética se coloca como uma necessidade real para a manutenção da vida. Mais do que a transição puramente energética, o debate mais avançado já coloca a questão no sentido de uma transição em termos ecológicos. Essa dinâmica se torna cada vez mais complexa ao se adicionar os interesses particulares das megaempresas que atuam na ponta das energias fósseis e não recuam em sua produção.

Muitos podem observar essa disputa no mundo e imaginar que o Brasil se encontra em uma posição vantajosa, afinal, mais da metade da matriz elétrica brasileira é composta por hidroelétricas. Essa visão, infelizmente, não traz respostas suficientes para o grande questionamento que paira sobre o setor elétrico brasileiro: de onde virá a energia para o desenvolvimento econômico do país?

Matriz Elétrica Brasileira 2022

Fonte: Balanço Energético 2023; 2022: 677 TWh

Ao efetuar uma rápida análise da matriz elétrica brasileira, a primeira impressão aparente é de que devido à grande proporção de energia hidráulica, há também uma grande proporção de energia barata, limpa e, portanto, sustentável. Infelizmente, essa não é a realidade – mesmo ignorando os impactos permanentes causados pela construção e instalação das usinas hidrelétricas.  O problema central se encontra no esgotamento das capacidades do modelo hidrelétrico em si.

A necessidade da transição ecológica se impõe por um motivo: as suas consequências impactarão o estilo de vida que conhecemos — o que inclui nosso modo de produção, inclusive de energia. Para debater o desafio para o Brasil no setor, é preciso falar sobre as características próprias da energia hidráulica. Ela é intermitente, irregular e descontínua; afinal, não se controla totalmente a disponibilidade — o mesmo ocorre com as energias solar e eólica, por exemplo. Então surge uma pergunta: como lidar com longos períodos de secas? Períodos esses que tendem a ser mais longos e severos, como consequência das próprias mudanças climáticas.

A solução tradicional que o Brasil encontrou foi a construção e a gestão eficiente de grandes reservatórios, ou seja, uma forma inteligente de estocagem de água. Esse recurso permitiu a oferta de energia elétrica por longos anos. No entanto, a capacidade de regularização dos reservatórios está cada vez mais comprometida, em parte devido à falta de criação de novos reservatórios — questão complexa, visto os impactos de ordem ambiental, as dificuldades técnicas, de financiamento e judiciais – e em parte devido ao fato de que a água dos reservatórios existentes não sustenta o crescimento da demanda.

Essa situação se entrelaça com o contexto de transição. Caso a descarbonização não fosse uma restrição, a solução mais prática e eficiente se manifestaria através do aumento da participação das energias provenientes de combustíveis fósseis. De modo a crescer de maneira sustentável – isto é, viável no longo prazo –, engatar um novo ciclo de industrialização e superar a dependência em suas diversas dimensões, o país precisa solucionar essa incógnita.  Afinal, apostar em um modelo emissor de GEE (gases de efeito estufa) aumenta o risco de o Brasil sofrer ataques do centro do sistema – tópico para um próximo artigo.

Logo, a solução existirá através da alteração da base de recursos, ou seja, aumentando a participação de energias renováveis e limpas a partir de outras fontes, principalmente solar e eólica (as quais também são intermitentes e descontínuas). Para tal, é preciso alterar grande parte da cadeia produtiva do nosso setor elétrico. Isso inclui mudanças na estrutura de geração, transmissão e distribuição – aspectos que levamos décadas para construir. Não surpreendentemente, tal tarefa demanda inovações em todas as suas dimensões, isto é, inovações de financiamento, regulatórias, institucionais e de políticas públicas.

Quem possui capacidade para lidar com tamanhos riscos e incertezas? Embora a dominação neoliberal (e imperialista) em sua versão periférica tente impor o contrário, a realidade é que somente o Estado – um Estado empreendedor e inovador – é capaz de atuar no planejamento de larga escala para todo o país, na coordenação e na integração das redes e das cadeias produtivas e realizar investimentos volumosos na ótica da construção de um bem público a favor da soberania nacional.

Entretanto, as perspectivas mínimas do Brasil para esse projeto alimentam um profundo sentimento de desesperança e desalento. Não há, no horizonte, luta pela reversão da privatização da Eletrobras (maior responsável da coordenação do setor), além do sofrimento de milhares de brasileiros com apagões cada vez mais constantes (cortesia de empresas monopolistas estrangeiras). Outro impulso poderia ser dado pela Petrobras, caso ela se tornasse, de fato, uma empresa de energia e não apenas de petróleo – o que é impraticável, na ausência de um projeto político com horizonte na soberania nacional.

Um novo ciclo de austeridade e inviabilidade do investimento público sistemático está sendo implementado e defendido com unhas e dentes pelo presidente Lula e pelo ministro Fernando Haddad através do Novo Arcabouço Fiscal e a política de déficit zero, seguidos pela promessa de superávits primários nos anos seguintes.

Será esse o fechar das cortinas e a concretização do apagão da soberania nacional brasileira?

***
Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
Leia também “Haddad insiste no austericídio“, de Paulo Kliass.