Vlado Herzog: 50 anos se passaram, e o País precisa manter sua memória para que não seja nunca mais seduzido por uma ditadura.
O jornalista Vlado Herzog estava muito preocupado com a violência da ditadura militar e decidiu conversar com Marquito, o editor do Jornal da Tarde. Ambos estavam sendo ameaçados de prisão, e Marquito disse: “Eu, de minha parte, vou me picar pra algum lugar no interior. E acho que você deve fazer o mesmo. Pegue a Clarice e os meninos e sumam, se mandem”. Eram amigos desde o colégio e depois da Revista Visão e da base dos jornalistas do partidão, como era chamado o PCB. Marquito fez uma análise do aumento da perseguição política e da violência militar, e disse: “Como é, o que você acha de a gente se mandar daqui?”. A resposta foi rápida: “Eu fico. Não tenho nada a esconder. Não sou um criminoso”. O amigo sabia que não adiantava insistir. Despediu-se. No dia seguinte, dia 24 de outubro, de 1975, uma sexta-feira, o DOI-Codi iniciava o arrastão do fim de semana. Cedo foram buscar Rodolfo Konder, e à tarde foram buscar Fernando de Moraes, que, avisado, desceu pelas escadas os 15 andares e fugiu, pois pensava como Marquito, que a situação era muito perigosa.
O DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna), ligado ao Primeiro Exército, foi prender sexta-feira à noite Vlado Herzog. Ele trabalhava na TV Cultura como diretor de jornalismo, e lá decidiram que ele iria no sábado pela manhã para depor. Contou-me o primo jornalista Marcos Faerman, do Jornal da Tarde, que muitos pensavam que Vlado não devia ir e sim sumir por um tempo. Aliás, foi assim que comecei a escutar essa história toda, pois vivia então em Buenos Aires e estava distante do que se passava no país. Marcos sofreu muito com a morte do amigo jornalista e esteve na Missa Ecumênica da Praça da Sé.
O assassinato ocorreu pelas torturas ao jornalista Vlado Herzog, que sendo criança havia fugido com os pais do nazismo. Sua família judia sobreviveu na Europa nazista, mas no 25 de outubro de 1975, não pôde fugir dos seus torturadores. Cinquenta anos após esse trauma nacional muito divulgado no mundo, é preciso, por dever de memória, lembrar o que foi a longa ditadura militar que ainda tem simpatizantes. Todos os jornalistas ligados ao Partido Comunista Brasileiro já defendiam a luta pela democracia; não estavam de acordo com a luta armada.
A repercussão do assassinato de Vlado Herzog foi espantosa, e logo o Exército, com fotos forjadas, criou a versão de que ele havia se suicidado. Todos os jornais publicaram que ele tinha se suicidado, mas a reação dos jornalistas de São Paulo e do Brasil foi grande, assim como dos estudantes universitários. Não tardou por se decidir pela realização de um culto ecumênico na Catedral da Santa Sé, tendo à frente o cardeal Paulo Evaristo Arns. Integraria o culto o rabino Henry Sobel, depois veio o arcebispo Dom Hélder Câmara e outras lideranças. Dia 31 de outubro, na sexta-feira, a Catedral não só lotou como toda a praça da Sé, pois se calcularam 8 mil pessoas. Havia uns quinhentos policiais civis e militares, quase todos ao redor da manifestação e tudo foi feito para impedir o ato. Foi o primeiro grande ato político contra a ditadura desde o AI 5 em 1968.
O assassinato de Vlado Herzog entrou para nossa História, e vários documentários foram feitos, muitos livros escritos. Indico o filme “Vlado – 30 Anos Depois”, que conta a história do jornalista morto em 1975 durante a ditadura militar no Brasil. O documentário, dirigido por João Batista Andrade, foi lançado em 2005 e está à disposição no YouTube, vale a pena ver. O livro que li agora é do Audálio Dantas: “As duas guerras de Vlado Herzog – Da perseguição nazista na Europa à morte sob tortura no Brasil”. Audálio foi jornalista, presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo e deputado federal pelo MDB. Esse livro tem no seu final os depoimentos de Clarice Herzog, esposa de Vlado e mãe de seus dois filhos, Dom Paulo Evaristo Arns, rabino Henry Sobel, empresário José Mindlin, que à época era secretário de Cultura do Estado de São Paulo, e Márcio José de Moraes, que em 1978 deu a sentença de que a morte de Vlado foi responsabilidade do Exército. Ele disse na entrevista para o livro:
“A versão do suicídio era insustentável, de uma hipocrisia revoltante. Essa revolta moveu minha consciência e a de milhões de brasileiros. Foi um divisor de águas”.
Passou um mês inteiro lendo os autos do processo como juiz, e ficou chocado, pois Vlado se apresentou para depor e horas depois foi morto na tortura, e se perguntava que terror viveu o jornalista. O caminho até a sentença não foi fácil, tinha temor do que poderia ocorrer a ele e à sua família. A sentença foi a de responsabilizar a União pela morte de Herzog, o que atingiu o regime militar no seu âmago, pois ele foi morto num recinto militar. Foi ali, conclui, que o Estado repressivo se rompeu como um vaso que se quebra e não tem mais conserto.
Acredito que é preciso conhecer mais sobre a nossa História, e agora em 2025 recordar o jornalista Vlado Herzog. Cinquenta anos se passaram, e o País precisa manter sua memória para que não seja nunca mais seduzido por uma ditadura. Aliás, vivi na ditadura brasileira e depois na ditadura argentina de 1976, daí aprendi como a democracia é frágil. Precisa ser protegida, como ocorreu na mobilização do País no último 21 de setembro. É preciso conhecer a História, lutar contra a tendência humana à servidão voluntária, os amantes das ditaduras, os que adoram se submeter aos militares e autoritários enlouquecidos. Gratidão a Vlado Herzog que seguirá presente na nossa História.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli
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