Empresa de planos de saúde United Healthcare comandada pelo executivo morto nos Estados Unidos era a proprietária da Amil no Brasil até 2023
I
Quem não se lembra da cena de O Homem Que Fazia Chover (Coppola, 1992), na qual Matt Damon no papel de um advogado recém-formado pede ao vice-presidente de indenizações da mega seguradora Great Benefit que leia sua resposta ao pedido de autorização para um tratamento de leucemia? Extremamente constrangido (àquela altura o jovem paciente que necessitava do tratamento já havia morrido) e colocado contra a parece, o homem lê: “Em sete ocasiões anteriores, esta firma negou seu pedido – agora negamos pela oitava e última vez. A Sra. (a mãe do paciente) deve ser estúpida, estúpida, estúpida. Everett Lufkin, vice-presidente de indenizações.” A palavra usada pela Great Benefit e, na realidade, por todas as seguradoras americanas da área de saúde para essas negativas é deny. Na quarta-feira, 4 de dezembro, o CEO da maior seguradora de saúde dos Estados Unidos, Brian Thompson, foi assassinado a tiros no centro de Nova York e uma das primeiras descobertas dos investigadores foi que nos projéteis retirados do corpo do empresário estavam inscritas as palavras deny e delay (outra das palavras usadas para rechaçar os pedidos). Até o momento em que este texto está sendo escrito, 7 de dezembro, um dos ramos das investigações busca conexões com gente que ultrapassou todos os limites de paciência e boa fé com as canalhices praticadas pelas seguradoras e seus CEOs. O filme do Coppola já tem mais de 30 anos de idade. Não é exagerado supor que na época da sua realização o problema já vinha de longe acontecendo. É coisa, portanto, pra lá de consolidada, muito enraizada na sociedade americana e na cultura empresarial do país. Às vezes o copo transborda, a resignação se esgota, as vítimas resolvem dizer basta e, então, de qualquer forma, chutam o pau da barraca. Chega a ser cômico que se espere bons modos, equilíbrio e mesmo respeito à lei por parte de quem vem sendo implacavelmente tratado a pontapés durante décadas e décadas. Seja quem for o matador e suas motivações, as reações nas redes sociais foram imediatas. O tamanho das celebrações foi de tal porte que já no dia seguinte repercutia na imprensa tradicional, com reportagens e artigos assinados até no todo-todo NYT. Porque é isso mesmo, pau que bate em Chico, eventualmente pode também bater em Francisco…
II
Pode ser que tenhamos entrado numa era na qual apenas o humor negro seja do nosso agrado. Qualquer outro nos parecerá blasfemo ou pueril. Parece ser esse o tipo de humor que domina a “torrente de raiva contra o setor de planos de saúde após a morte do diretor executivo” da United Healthcare. Para que se possa ter ideia de como anda o nível desse humor, na matéria cujo título é essa “Torrente de raiva…”, seus autores escrevem: “A polícia ainda não identificou o atirador, que ainda está à solta. Mas isso não impediu que os comentaristas de mídia social tirassem conclusões precipitadas e demonstrassem uma flagrante falta de compaixão pela morte de um homem que é marido e pai de dois filhos”. Uma das respostas encontradas nas redes sociais foi: “Bin Laden também tinha.” Todos nós sabemos que Bin Laden não é um personagem que se possa dizer querido pelo público americano, muito menos pelo nova iorquino. A partir daí, estão mais que estabelecidos os parâmetros. A mesma matéria, publicada no dia seguinte ao do assassinato, se via obrigada a destacar outra das reações: “‘Pensamentos e deduções para a família’, dizia um comentário abaixo de um vídeo do tiroteio publicado pela CNN. ‘Infelizmente, minhas condolências estão fora da rede (de cobertura dos planos de saúde)’.” E por aí vão. As informações são de que essas publicações foram e seguem sendo milhões, sempre a favor do assassino e/ou de repulsa ao morto e às seguradoras. Agora, passado o impacto inicial do crime, quando todos os corpos policiais do país mais policiado do planeta se concentram numa caçada que talvez só encontre paralelo à do Unabomber, no século passado, as redes sociais apenas aguçam sua criatividade e seu humor, encantadas ainda com a façanha justiceira do misterioso encapuçado. Vale a pena entrar no Instagram, por exemplo, apenas para visualizar a amplitude dos exemplos dessa explosão de raiva e inventividade. Justiceira, sem dúvida, para esses milhões de “estúpidos, estúpidos, estúpidos”, para usar os termos do diretor da Great Benefit – a eles pouco importa a verdadeira motivação do atirador. Nenhum assassinato recente terá sido celebrado e o assassino elevado à categoria de herói como o do presidente da United Healthcare (no Brasil, foi proprietária da Amil de 2012 a 2023) – exceto, é claro, o de Osama Bin Laden, mas Bin Laden era Bin Laden e os que o mataram não podiam obviamente ser caçados, já que eram eles mesmos os caçadores. O Unabomber, apesar das ideias muitas vezes razoáveis expressas no seu manifesto (A Sociedade Industrial e o seu Futuro), matou gente inocente, eleitas aleatoriamente. Não foi o que fez o assassino do capuz – será que já o estão chamando assim? Sua vítima foi escolhida a dedo e, de novo, sejam quais forem suas motivações, às vítimas da ganância e rapinagem das seguradoras sua ação parece um ato de plena justiça. Seu crime, ou ato de terrorismo (é curioso que nem a polícia nem a mídia o estejam colocando nessa categoria, sequer como possibilidade), a ser confirmado como tal, o colocaria ao lado dos terroristas do final do século XIX, anarquistas quase sempre, que elegiam seus alvos tendo em vista suas visões políticas, mas também rigorosas posturas de natureza ética (ver O Homem Revoltado, Abert Camus – “…esses algozes que colocavam a própria vida em jogo, e de maneira tão completa, só tocavam na dos outros com a consciência mais escrupulosa”, pag. 199).
III
As mesmas redes sociais que amplificaram e amplificam os discursos boçais da ultradireita também abrem espaço para a repulsa, para a voz e a imaginação do povaréu cansado da arrogância dos bilionários e de empresas monstruosamente grandes que atuam como vampiros.
IV
Muito antes da existência das redes sociais, o famigerado povo (ei-lo aqui de novo, em sua versão mais comum e popular – ver artigo anterior) já encontrava, vez ou outra, modos de romper a mordaça imposta pelos donos das mídias tradicionais para manifestar seu afeto a esses raros foras da lei que interrompiam o sossego do espetáculo e dos espectadores para dizer que a história não ia bem, não estava sendo bem contada e que andavam ocultando a verdade. Isso às vezes acontecia – pelo menos no mundo da ficção. Num filme de 1971, chamado Corrida Contra o Destino (Vanishing Point, Richard Sarafian), o papel das redes sociais é ocupado por um DJ preto e cego que se autodenomina Super Soul e que transmite programas a partir de uma rádio independente localizada num minúsculo povoado a noroeste de Las Vegas. É ele quem narra ao vivo a rápida caçada da polícia ao herói do filme. A história é bastante simples e tem o tempero característico da contracultura do final dos anos 1960. Um sujeito chamado Kowalski, que trabalha como entregador de carros, aposta com seu fornecedor de combustível que é capaz de levar um desses carros de Denver a São Francisco, uma distância de uns 2.100 km, em menos de 15 horas. O elo entre Super Soul e Kowalski cresce dramaticamente na exata medida em que aumenta a intensidade da caçada, e o DJ não apenas transmite e narra a escapada, como passa a dar informações ao fugitivo, o que lhe permite driblar as armadilhas montadas pela polícia. É ele quem dá voz e sentido àquela fuga aparentemente despropositada e a politiza. Para ele, Kowalski é a representação da liberdade e a polícia, da brutalidade, da desproporcionalidade entre a força do Estado e do aparato repressivo (e poderíamos dizer hoje, da ultravigilância) e o indivíduo, entre as grandes máquinas e os zé-ninguém, os despossuídos – o povo.
VI
A imprensa europeia, até agora, tarde de segunda-feira, 9 de dezembro, cinco dias após o assassinato, não deu a menor bola para o assunto – pelo menos, até onde pude verificar, apenas o The Guardian da Inglaterra publicou uma chamada na primeira página de sábado. Será porque no Velho Mundo os conflitos não se resolvem à bala? E, então, esses crimes não interessem tanto aos europeus? Será isso? Na realidade, também aqui os conflitos se resolvem à bala, e não raras vezes, mas não no varejo, no picado, como nos Estados Unidos e, de resto Ñamerica (como lembra Martín Caparrós, e essa análise é essencialmente dele, de acordo ao menos com minha interpretação), terra de bravos, do individualismo como alma (soul) da pátria. Aqui é sempre no atacado. Quando se mata é aos milhões, em genocídios e campos de extermínio, guerras e gulags.
PS: Na segunda-feira, dia 9 de dezembro, o suposto assassino do empresário foi preso numa lanchonete McDonald’s, na Pensilvânia, a menos de 500 km de Nova York. Seu nome é Luigi Mangione e tem 26 anos de idade. No dia seguinte, o jornalista independente Ken Klippenstein divulgou em seu blog O Manifesto de Luigi. Ele conta que obteve uma cópia do manifesto – “o verdadeiro, não a falsificação que está circulando na Internet” e que os principais meios de comunicação também estão de posse do documento, mas se recusaram a publicá-lo e nem mesmo explicaram o motivo. O Manifesto diz o seguinte:
Para os federais, vou ser breve, pois respeito o que vocês fazem pelo nosso país. Para poupar-lhes uma longa investigação, afirmo claramente que não estava trabalhando com ninguém. Foi bastante trivial: um pouco de engenharia social elementar, CAD básico e muita paciência. O caderno espiral, se estiver presente, tem algumas anotações e listas de tarefas que esclarecem a essência do problema. Minha tecnologia é bastante restrita porque trabalho com engenharia, portanto, provavelmente não há muitas informações sobre ela. Desculpas por qualquer mal que possa ter causado, mas isso tinha que ser feito. Sinceramente, esses parasitas simplesmente mereceram. Um lembrete: os EUA têm o sistema de saúde nº 1 mais caro do mundo, mas ainda assim ocupamos a 42ª posição em termos de expectativa de vida. A United[1] é a maior empresa [indecifrável] dos EUA em termos de capitalização de mercado, atrás apenas da Apple, Google e Walmart. Ela cresceu e cresceu, mas e a nossa expectativa de vida? Não, a realidade é que essas [indecifrável] simplesmente se tornaram poderosas demais e continuam a abusar de nosso país para obter lucros imensos, porque o público americano permitiu que elas saíssem impunes. Obviamente, o problema é mais complexo, mas não tenho espaço e, francamente, não tenho a pretensão de ser a pessoa mais qualificada para apresentar o argumento completo. No entanto, muitas pessoas já esclareceram a corrupção e a ganância (por exemplo, Rosenthal, Moore), décadas atrás, e os problemas simplesmente permanecem. Não se trata de uma questão de conscientização neste momento, mas claramente de jogos de poder em ação. Evidentemente, sou o primeiro a encarar isso com uma honestidade tão brutal.
[1] Ele se refere obviamente à United Healthcare
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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