Do silêncio profundo ao enfrentamento das políticas perversas de silenciamento e de apagamento
Enquanto psicanalistas, no exercício de nossa prática cotidiana, aprendemos sobre a importância do silêncio no curso de um processo de análise. Se em alguns momentos ele se apresenta como o intervalo necessário para que novas associações possam advir, ou até mesmo, como condição face a certas elaborações; em outras ocasiões, o ato de silenciar se impõe diante da impossibilidade real de enunciar algo. Desse modo, o silêncio nos constitui e diz sobre a forma singular que cada sujeito habita e é habitado pela linguagem. Outra coisa, totalmente diferente, é o silenciamento. Esse é perversamente imposto. O silenciamento busca atingir pessoas de forma intencional, sufocando, historicamente, identidades, saberes, valores e desejos, como ocorre a todo momento com os negros, os povos indígenas, as mulheres, os pobres, as comunidades LGBTQIA+, entre outros.
Até então, eu pensava que essa fronteira entre o silêncio e o silenciamento parecia minimamente estabelecida, considerando alguns desses argumentos mencionados acima. Entretanto, quando me deparei, no Instituto Inhotim (2024), com a obra da artista portuguesa Grada Kilomba: “O Barco”, senti tanto um silêncio profundo, quanto a força das garras cruéis do silenciamento. Se nos minutos iniciais silenciei, talvez pelo mal-estar que a primeira impressão da obra me causou, logo após, me dei conta da minha vergonha por ser um homem branco: senão agente de produção de silenciamento, no mínimo, cúmplice, ou então, espectador das políticas racistas que insistem em perdurar na nossa cultura.
Essa fantástica experiência multissensorial não se limitou a isso, pois ao sair da paralisia, circulei vagarosamente pelos blocos de madeira que compõem os labirintos de “O Barco”. Encorajado pela pulsação do poema de Grada, que inspirou a criação daquela instalação, fiquei absorvido pelos versos escritos com tinta a óleo dourada em alguns daqueles blocos. Ao longo do deslocamento, “o visitante depara-se com um poema escrito por Kilomba e traduzido para seis idiomas: Yorubá, Crioulo de Cabo Verde, Kimbundu, Português, Inglês e Árabe da Síria”. Nesse momento, penso ter entendido um pouco o que a artista quer dizer ao explicar a feitura dessa escultura como um “objeto vivo” e que em seu processo criativo, aborda “três grandes temas: a violência, a morte e a repetição”.
Foi uma experiência de corpo. A cada passo, a pausa se impôs como se eu percebesse a necessidade de me curvar diante de cada palavra inscrita. Algo ali me fez despertar, agora, com mais determinação para assumir a minha responsabilidade com a memória, sobretudo, com a urgência do enfrentamento das políticas perversas de silenciamento e de apagamento do racismo.
A instalação de “O Barco” é composta de 134 blocos de madeira queimada, dispostos em uma área de 220m. Sua arquitetura performática simboliza o porão das embarcações que transportaram “milhões de corpos africanos escravizados durante séculos de tráfico”, em condições absolutamente desumanas. Com determinação, delicadeza e poesia, Grada expande a linguagem chamando a nossa atenção para um passado que precisa ser relido. Somente assim, poderemos enfrentar o ciclo mortífero da repetição e sonhar com outras possibilidades de futuro.
No vídeo, que conta como essa obra foi sendo tecida, a autora fala sobre o seu interesse em rever como e por quem as histórias são contadas. Grada desvela as origens da escravatura que formou Portugal e grande parte da Europa por centenas de anos e que em função da política de apagamento, não está representada em lugar nenhum na cidade. Mesmo Lisboa estando preenchida de monumentos nos espaços públicos – “principalmente ao longo do rio que celebram a história colonial e que tem uma linguagem extremamente patriarcal e infantil” –, evidencia-se apenas homens em cima de barcos a celebrarem supostas glórias.
Ao retratar as narrativas perversamente transmitidas, Grada denuncia “um sistema meticulosamente pensado para colocar certas pessoas fora da condição humana e assim escravizar. Há todo um vocabulário, uma linguagem semântica e visual que tem que ser revisada, tem que ser desmantelada e reinventada de novo”. Seu olhar crítico dá lugar a corpos invisibilizados, sua voz suave, porém determinada, faz eco ao enunciar aquilo que realmente essas embarcações transportavam, pois, segundo a artista: “não estamos a falar de glória, estamos a falar de genocídio, estamos a falar de brutalidade e de desumanização”. Em “O Barco”, os temas da memória, da violência, do trauma, do racismo e do pós-colonialismo ficam reverberando o tempo todo.
A voz de Grada Kilomba é um convite para repensar a história, de modo que cada um se sinta responsável para que a barbárie não se repita. Com a potência de sua poesia e o engajamento de seu ativismo, ela nos coloca dentro de “O Barco”, como se o público entrasse num processo de imersão onde fosse possível imaginar os corpos espremidos naqueles espaços minúsculos. Aos poucos, vamos nos dando conta de nossa responsabilidade, seja pela recusa do passado, seja pelos pactos de cumplicidade que por ventura estabelecemos com tantos outros barcos que ainda hoje oprimem, segregam e matam.
Estou de acordo com Carol Braga em seu artigo “Cinco razões para não deixar de visitar a obra O Barco, de Grada Kilomba, no Inhotim” . Para a autora, “A multiartista Grada Kilomba é uma mulher de voz grave e baixa. Tem um sorriso discreto e muita firmeza no falar. É aquele tipo de pessoa que, enquanto se pronuncia, provoca uma atmosfera de silêncio ao redor. O que ela diz, o que ela faz, o que ela representa, precisa ser ouvido, visto, lido. Por isso, na sua próxima visita ao Inhotim, considere fortemente uma passagem pela Galeria Galpão, onde está O Barco”.
Como observa Braga, ao visitarmos a instalação estaremos diante de “uma experiência sensorial única”, imersos numa reflexão sobre “a diáspora africana e o colonialismo”. A releitura dessa história abjeta de violência busca lembrar daqueles que foram brutalmente silenciados, assim como, nos advertir para não silenciar e, tampouco, ser agentes de silenciamento diante de políticas de apagamento da condição humana.
Desde o meu ponto de vista, a releitura de Grada Kilomba carrega um traço que demarca uma diferença, absolutamente radical, imprescindível: é a mulher negra a reescrever essa história. Ou seja, não estamos diante do clássico clichê do homem branco adornando seus símbolos fálicos com intuito de elevar o poder do colonizador, glórias, conflitos e conquistas. Pelo contrário, ao desvelar as entranhas das feridas que ainda sangram, Grada coloca em causa o compromisso com a coletividade, o protagonismo da mulher negra, a memória, a esperança e o futuro da humanidade.
Com o propósito de convidar o leitor para embarcar na arte e nas letras de Grada Kilomba, transcrevo o seu poema que precisa ser sempre lembrado.
O Barco / The Boat (2021)
Poem by Grada Kilomba (1968 – Lisboa)
Um barco, um porão
Um porão, uma carga
Uma carga, uma história
Uma história, uma peça
Uma peça, uma vida
Uma vida, um corpo
Um corpo, uma pessoa
Uma pessoa, um ser
Um ser, uma alma
Uma alma, uma memória
Uma memória, um esquecimento
Um esquecimento, uma ferida
Uma ferida, uma morte
Uma morte, uma dor
Uma dor, uma revolução
Uma revolução, uma igualdade
Uma igualdade, um afeto
Um afeto, a humanidade
(Publicado em Sul 21)
***
Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli
Leia também “Três Estrelas“, de Abrao Slavutzky.