Assim foi o início do discurso de Mercedes Schlapp, Diretora de Comunicações do governo Trump, no ato da ultradireita em Madri:
– Viva Espanha! Viva Estados Unidos!
– Viva!
– Viva Israel! – vibra de volta a plateia. 

Imagine a cena. O presidente português participando de um ato político em Brasília organizado pelos partidos bolsonaristas e no meio do discurso chamando de corrupta a esposa do presidente Lula. Claro que imaginar algo tão estapafúrdio está mais para o campo da literatura cômica que para o da crônica política. Mas foi exatamente o que aconteceu domingo passado em Madri. Convidado de honra do Vox (partido da ultradireita espanhola), o presidente argentino Javier Milei, discursando numa manifestação para algo como umas dez mil pessoas (segundo os organizadores) e com a presença de líderes ultradireitistas de toda a Europa, se referiu indiretamente à esposa de Pedro Sánchez acusando-a de corrupta. Claro que a claque de Santigo Abascal imediatamente explodiu em entusiasmados aplausos. No centro do picadeiro, o argentino gozava o sucesso esperado. Passado o estupor inicial que tomou conta de boa parte do país, ainda na noite do domingo, o chefe da diplomacia espanhola anunciou as primeiras medidas, cobrando desculpas públicas por parte do argentino. Na manhã seguinte, sem respostas, chamou a embaixadora espanhola em Buenos Aires para consultas e convocou o embaixador platense para exigir explicações. Difícil dizer onde vai parar isso. Mas, definitivamente, não é Milei o assunto aqui. Ele foi apenas o grande chamariz trazido das ex-colônias e utilizado no show (ou “festa patriótica”, segundo o anfitrião – e a denominação não é desimportante) por Abascal para dar o impulso inicial ao crescimento que seu partido pretende alcançar nas eleições para o Parlamento Europeu.

II

Os verdadeiros protagonistas do espetáculo, além do anfitrião, eram algumas das estrelas da ultradireita europeia: Victor Orban da Hungria e Georgia Meloni da Itália, presentes por videoconferência, Marine Le Pen, o novo chegado ao pedaço o português André Ventura, além de algumas figuras menores do trumpismo estadunidense orando aos céus, literalmente, e aos bem-aventurados da Terra, a eliminação de todos aqueles que ameaçam a paz, a existência e os valores tradicionais do que para eles é o mundo ocidental.

III

A arrogância que lhe permitiu avançar de modo tão vulgar, desmedido e à margem dos mais mínimos decoro e respeito institucional contra o presidente do país que o hospeda é, por um lado, próprio do estilo brucutu do recém-eleito mandatário argentino e dos seus companheiros de ideologia em geral, de Mussolini a Goring e Trump ou ao Le Pen pai. A rudeza, a belicosidade, os maus modos e a má educação, a grosseria nos gestos, atos e palavras sempre foram marca desses políticos. Mas é também, e isso é o que mais importa aqui, expressão do estado de ânimo das agremiações ultras europeias desde que jogaram na escura caverna da desmemória a mácula dos crimes cometidos por seus antecessores na primeira metade do século XX. Como o passado parece definitivamente esquecido pelas novas gerações, a empolgação toma conta de suas hostes, em cujas almas sopra o vento da herança nazi-fascista. No meio da semana, o principal candidato do Alternativa para a Alemanha (AfD) para as eleições de junho, Maximilian Krah, foi forçado a abandonar a disputa após a repercussão às suas declarações ao diário La Repubblica nas quais afirmou: “Eu nunca direi que todo mundo que usava uniforme da SS era automaticamente um criminoso. A culpabilidade deve ser avaliada caso a caso.” Pegou mal e até os próprios aliados reagiram pesado ao que evidentemente poderia soar como inaceitável àquelas parcelas mais sensíveis do seu eleitorado. Marine Le Pen e Matteo Salvini trataram logo de mostrar distância e anunciaram a ruptura de relações com o AfD – a bem da verdade, atritos anteriores já vinham ameaçando os laços de amizade e a entrevista de Krah foi a gota d’água.  Eleitoralmente, a medida emergencial pode até colar para alguns, mas a pegada é indelével. Está no DNA de todas essas agremiações, sem exceção. São de cabo a rabo herdeiros espirituais do nazi-fascismo. (Suponho, por isso mesmo, que não serão poucos os judeus que sintam uma repugnância profunda ao assistirem o ministro de Israel para Assuntos da Diáspora e Combate Contra o Antissemitismo Amichai Chicki discursando no ato madrilenho.)

V

Não resta dúvida de que para o público presente naquele ato, a vulgaridade estimula a libido. Os publicistas do nationalsozialismus já o sabiam. Milei não inova nada. É o bufão de sempre, repetindo fórmulas do passado que assombraram o século XX, lapidadas pelas novas técnicas da publicidade e das pesquisas de opinião que as orientam. A presença de Milei no show do Vox e a ofensa ao presidente espanhol e sua esposa foram obviamente um gesto calculado e largamente pensado com vistas a incendiar os seguidores de Abascal a apenas três semanas do pleito do dia 9. Ali estava o batalhão de vanguarda, os que desde domingo passado já estão nas ruas alimentando a espiral de medo, rancor e ódio ao outro, ao diferente, essa onda de sentimentos mais ou menos obscuros que contagia e alimenta o crescimento de suas bancadas e o fortalecimento de seus governos nacionais, agora com vistas ao centro do poder do Velho Continente.

VI

Quase 500 milhões de cidadãos europeus (exatamente 448.7753.823) poderão votar para eleger 720 deputados. As cinco maiores populações são respectivamente Alemanha, França, Itália, Espanha e Polônia. O número de representantes é proporcional ao tamanho da população. Alemanha elege 96 eurodeputados, França 81, Itália 76, Espanha 61, Polonia 53 e assim sucessivamente até o último dos 27 países que compõem a União. Na primeira legislatura, a de 1979, 84% dos eurodeputados eram homens, na última, a de 2019, esse número havia baixado para 59% – pode até se ver algum avanço por aí, mas não vale esquecer que também entre as bancadas da direita e dos ultras há mulheres e não são poucas.

VII

Muitos analistas gostam de enfatizar as diferenças entre as duas famílias em que se repartem atualmente os parlamentares ultra dentro da Eurocâmara, Identidade e Democracia (ID) e Conservadores e Reformistas Europeus (ECR). Os primeiros juntam, por exemplo, o Reagrupamento Nacional de Le Pen, La Liga de Salvini e, pelo menos até a semana que terminou agora, o AfD da Alemanha do citado Maximilian Krah. No segundo agrupamento estão o Vox da Espanha e os Irmãos de Itália de Giorgia Meloni. As diferenças não impedem que se frequentem e se apoiem, ainda que às vezes se choquem momentaneamente. No espetáculo do Vox em Madrid estiveram todos juntos, como vimos. Simultaneamente, Le Pen e Salvini acusaram a pisada na bola do aliado alemão e o tiraram do time.

VIII

Há em ambos os agrupamentos, destacam ainda os analistas, tanto os atlantistas quanto os ferrenhos defensores do mais irrestrito livre comércio, os pró-russos e os pró-ucranianos. Do mesmo modo, registram diferenças “quanto aos direitos e à posição da mulher na sociedade” e “diferenças em matéria fiscal e de políticas sociais”. E poderia ser de outra maneira quando se juntam economias tão díspares quanto as da Dinamarca e as de Portugal, Grécia e Alemanha, França e Malta? Não será difícil imaginar quanta dessemelhança deve existir na base social dos ultras suecos relativamente à questão do aborto frente aos seus camaradas poloneses, por exemplo. Mas quando o tema é o renascido nacionalismo, a defesa das fronteiras pátrias, as crescentes restrições às políticas migratórias e o discurso da lei e da ordem, aí todos se aproximam e se juntam na mesma casinha. Parece, portanto, muito evidente que para além desses inúmeros temas que agora mesmo colocam os ultras em duas famílias que atuam eventualmente desunidas na Eurocâmara, existe um componente de fundo exercendo uma forte atração magnética e que de fato os unifica numa única corrente política. Um dos lemas dessa corrente está subjacente no discurso da senhora Mercedes Schlapp (citada acima): “É preciso acabar com os esquerdistas, é preciso acabar com os comunistas. Eles ameaçam nossa civilização.” É essa a retórica que chega do outro lado do Atlântico. Tem um intenso cheiro de clorofórmio, mas mesmo assim o público da renascida ultradireita espanhola se levanta para aplaudir de pé. O que essa sombria retórica está encampando é a brutal negação do que não é o norte-americano branco ou europeu, de acordo com eles mesmos, os fundadores da civilização ocidental. Na nossa civilização, dizem, só cabemos nós.
PS: O discurso completo, um impressionante delírio político religioso vigorosamente aplaudido a partir do minuto 44 vale a pena ser ouvido. .

***
Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
Clique aqui para ler “Sete líderes da Direita Global”, de Guillermo Oglietti.