O episódio do “mal-entendido” da solicitação das vacinas em nome do Fux, aquele do “In Fux, we trust“, revela muito bem o caráter estrutural da organização da sociedade brasileira, algo revelador do enigma do ornitorrinco, no qual várias formas aparentemente contraditórias e disfuncionais convivem em perfeita “desarmonia”.

Alguns desses traços estruturais ficaram visíveis mais recentemente, em particular quando o Estado brasileiro, depois de uma pequena lua de mel com a população de baixa renda, fez transparecer, através da tomada do governo por parte de suas elites, o caráter resultante de uma história de tradição e formação escravagista e de transições – ou será de transações? – por acordos das elites.

As chamadas carreiras de Estado são um dos principais exemplos dessa cristalização da boa origem, do acesso particular dessa elite. Tudo, em tese, justificado pela meritocracia.

O tempo escolar, o esforço pessoal, a busca pela excelência, a competição, justificam esse acesso. Esta lógica foi a responsável inclusive por enganos do nosso próprio governo, que consolidou e deu força a burocracias, acreditando que esse processo daria conta de uma ascensão de indivíduos a uma carreira, coerentes com a defesa da sociedade.

Ora, quem acessa essa carreira? Na tradição e oportunidades geradas por esta sociedade só poderiam ter acesso a elas a elite e os seus filhos.

Hoje, a história continua sendo essa. Mesmo neste momento em que todos deveriam se preocupar com o acesso universal à vacina, à vida, principalmente os que pretensamente defendem a sociedade e o Estado, eles, sem pudor, deixam transparecer que se julgam detentores do Estado, colocando-se como essenciais para o seu bom funcionamento e para a vida em sociedade.

Ora, não podemos viver sem eles? Na visão deles, talvez vivamos sem o agricultor familiar, que é responsável pelo nosso alimento, mas não sem eles, os juízes! Os problemas da sociedade brasileira estão muito além dos “bolsominions”. Talvez até por isso eles existam! Enquanto não acabarem esses traços formativos do caráter brasileiro, sempre haverá espaço para a metáfora do ornitorrinco!

Enquanto o povo, nesta pandemia, encontrou formas de praticar a vida em sociedade através dos seus movimentos (vide as ações de solidariedade dos povos do campo e da cidade), as elites continuam transparecendo nos seus atos, praticando aquilo que fazem melhor, a vida nas castas!

Felizmente, cada vez mais aparecerão movimentos para AMAR e reconstruir ELOS entre as pessoas.

Ano passado eu morri, mas esse ano … eu não morro!