A fome não é um fenômeno natural. É um fenômeno político, de escolhas feitas pelas elites dirigentes com vistas às suas prioridades. Josué de Castro, em sua obra Geografia da Fome, publicada no imediato pós-II Guerra, deu uma grande contribuição para o entendimento de que a fome e o subdesenvolvimento fazem parte do mesmo quadro histórico-estrutural. Concorreu ao Nobel da Paz e da Medicina por sua militância contra a fome.
Em 1987, o Dieese recebeu o prêmio Josué de Castro conferido pela UNB – Universidade de Brasília e pelo INAN – Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição. Foi um reconhecimento por uma longa trajetória de estudos sobre a inflação, o salário mínimo, a distribuição de renda e a nutrição.
O Departamento, como nós o chamávamos, lidava com a carestia desde sua fundação, em 1955. E com uma dimensão ainda pouco visível nos estudos sobre alimentação, que se centravam principalmente na disponibilidade dos alimentos e não no tema do acesso a eles.
O acesso aos alimentos é uma questão fundamental, pois um país pode até produzir alimentos suficientes para abastecer sua população (como é o caso do Brasil, um dos maiores exportadores de alimentos do mundo) mas, mesmo assim, ter a fome como uma tragédia cotidiana. O Dieese trazia esta questão ao debate desde sempre. O salário mínimo era insuficiente para alimentar a família; o custo da cesta básica consumia quase todo o salário; o número de horas de trabalho necessárias para comprar um litro de leite ou o pão francês subia o tempo todo.
Era comum se perguntar como as pessoas conseguiam sobreviver com o salário mínimo. Não conseguiam. O Dieese, nos anos 80, teve acesso às estatísticas de expectativa de vida por faixas de renda. Estava ali a prova: os que ganhavam abaixo de três salários mínimos tinham expectativa de vida menor em até 15 anos do que aqueles que estavam em faixas superiores de salários.
Constatou também, usando metodologia da Escola de Saúde Pública da USP, que havia uma relação inversa entre o poder de compra do salário-mínimo medido em cestas básicas e a mortalidade infantil: quanto maior o salário-mínimo real, menor a mortalidade infantil. Essa correlação deixou de existir ao longo dos anos 80, quando o acúmulo de investimentos em saneamento básico e saúde vindos desde a década anterior, principalmente na vacinação infantil, passaram a ser um fator importante na diminuição da mortalidade infantil.
Os estudos atuais sobre segurança alimentar não consideram apenas a disponibilidade e acesso aos alimentos, mas também o preparo dos alimentos. Aqui, o tema do saneamento é central. Alimentos preparados com água de má qualidade não geram os resultados nutricionais esperados, já que as pessoas podem ser contaminadas com doenças que impedem a absorção adequada dos nutrientes. É a desnutrição ocorrendo mesmo quando há alimentos disponíveis e a renda mínima permite a compra de alimentos suficientes.
Isso tudo mostra a complexidade da manutenção da segurança alimentar. É preciso produzir alimentos em quantidade e qualidade suficientes, onde as políticas agrícola e agrária jogam um papel fundamental. A distribuição da renda deve ser adequada para permitir o acesso à boa alimentação, em quantidade e qualidade e a política pública deve garantir a transferência de renda para corrigir as distorções de acesso aos alimentos. A política de educação, saúde, assistência social e saneamento básico devem estar presentes para garantir a nutrição da população. E o combate à inflação é essencial para que a alimentação seja regular, já que a saúde alimentar exige continuidade e tempestividade nos diferentes ciclos da vida.
Essa longa luta pela segurança alimentar teve grandes resultados no Brasil durante os governos Lula e Dilma. A integração das políticas públicas de combate à inflação com a política agrícola, particularmente o Programa Nacional de Agricultura Familiar e a distribuição de alimentos em escolas, o PNAE, o Bolsa Família, o aumento do salário mínimo e das verbas previdenciárias e mais gastos em saúde, educação, saneamento básico e mais e melhores empregos, retirou o Brasil do Mapa da Fome da FAO/ONU.
Foi uma realização impressionante. Milhões de pessoas que conviviam com a tragédia da fome cotidiana saíram desta condição social terrível. Aprendemos neste período que a fome não é uma fatalidade, é resultado da indiferença das elites com o sofrimento de milhões.
Tampouco a fome pode ser tratada com campanhas esporádicas de solidariedade. A fome e a miséria exigem políticas públicas corajosas e permanentes. Foi isso que os governos Lula e Dilma fizeram.
Desde o golpe contra a presidenta Dilma, houve um desmonte sistemático das políticas públicas de combate à fome e à miséria. O governo Temer abandonou de fato os compromissos internacionais com a Agenda 2030 das Nações Unidas, em que a Fome Zero é o objetivo número 2. Como ele fez isso? Com a emenda 95, que criou o teto de gastos e congelou o valor real dos gastos primários por 20 anos. Os 17 objetivos da Agenda 2030 exigem aumento dos gastos públicos per capita.
O governo Bolsonaro aprofundou o abandono do objetivo da Fome Zero da ONU. Desarticulou os programas de segurança alimentar, abandonou a política de salário-mínimo, esvaziou o Bolsa Família, reduziu os gastos públicos em educação, saúde, saneamento e os gastos sociais em geral.
O combate à inflação foi mal sucedido. A inflação voltou a ter dois dígitos, a inflação dos alimentos e combustíveis ficou muito acima da média geral. A carestia está de volta.
Voltamos ao Mapa da Fome da FAO-ONU, com 7,3% da população[1] com insegurança alimentar severa e 28,9% da população com insegurança alimentar moderada e severa, isso na média de 2019-2021[2] . Este é o resultado de um impeachment fraudulento, um golpe de Estado criminoso e da eleição de um político comprometido com os muito ricos e bilionários.
Bolsonaro jogou milhões na miséria. Nunca apoiou as políticas integradas de combate à fome, pelo contrário. Adotou o auxílio emergencial por pressão do Congresso e agora o auxílio Brasil por medo de perder a eleição e não por compromisso real contra a miséria que assola o país.
A política histórica contra a fome no Brasil deve ser retomada, isso é um imperativo político e moral. Que o prêmio Josué de Castro dado ao Dieese em 1987 seja lembrado, como também o grande legado histórico de Lula e Dilma ao tirar o Brasil do Mapa da Fome.
Notas:
- [1] O critério utilizado pela FAO é inclusão no Mapa da Fome a partir de 2,5% da população com insegurança alimentar severa.
- [2] A Oxfam publicou estimativas da abrangência da fome no Brasil com 33 milhões nesta condição em 2022.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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