Relações trabalhistas no passado recente
Poucas áreas sofreram impacto tão relevante com o fim da Guerra Fria quanto a relação entre empregadores e empregados. Independentemente da classe social ou nacionalidade, até o fim da Guerra Fria a busca por direitos trabalhistas era não só considerada essencial para garantir o progresso individual, mas também uma necessidade mercadológica do sistema capitalista para mostrar a sua superioridade em relação ao regime comunista. O conflito silencioso entre comunismo e capitalismo ajudou a criar uma classe trabalhadora de classe média no mundo todo, inclusive no Brasil.
No entanto, após o fim da Guerra Fria e a vitória da ideologia capitalista, houve um retrocesso patrocinado pela lógica de que se o regime que defendia uma distribuição igualitária da renda e propriedade colapsou, a solução estaria necessariamente nos princípios neoliberais de prevalência do mercado, solução que os partidos da antiga esquerda não conseguiram contestar (Howell e Pearce, 2002, p. 14). Assim, mesmo em países governados nos anos 90 por partidos associados a visões mais progressistas, como os Estados Unidos do democrata Bill Clinton, o Reino Unido do trabalhista Tony Blair e a Austrália dos trabalhistas Bob Hawke e Paul Keating, relegou-se a questão do emprego ao livre mercado.
O Brasil de Fernando Henrique Cardoso, que seguiu a onda neoliberal em quase todas as suas políticas, conseguiu atravessar a década de 90 sem grandes alterações na legislação trabalhista. No entanto, por meio dos processos de privatização deixou que uma parte importante das relações de emprego em setores prioritários do país fosse integralmente regulada pela alardeada busca pela eficiência e produtividade. A abertura comercial sem critérios e as privatizações ratificaram a decadência do emprego no setor produtivo, a ponto de, entre 1990 e 2018, o peso da indústria no PIB despencar de 20% para apenas 11% (Bresser-Pereira, 2019).
Em resumo, no período pós Guerra Fria prevaleceu a ideia de que a principal obrigação do Estado seria garantir o direito à segurança pública e à propriedade, enquanto as relações de emprego seriam melhor tratadas pelas empresas e o mercado, pois apenas assim a sociedade civil poderia avançar (Fukuyama, 2001, p. 18). Instituições multilaterais como o FMI e o Banco Mundial estimularam a onda neoliberal e negligenciaram o papel do Estado como indutor de empregos. As universidades de economia e negócios americanas ajudaram no processo ao difundirem mundialmente que a meritocracia e as habilidades empreendedoras certas no livre mercado poderiam levar qualquer pessoa a progredir. E, assim, não houve resistência ao ataque mundial à legislação trabalhista. O Brasil, com algum atraso, aderiu.
Relações Trabalhistas no Brasil do Presente
Em 2017 o Brasil aprovou a Reforma Trabalhista que mudou significativamente as formas de empregabilidade. Sob o argumento de que o engessamento das relações de trabalho afastaria o investimento de empresários na atividade produtiva, a atração de capital estrangeiro e, por consequência, a criação de empregos, houve um reconhecimento de estruturas flexíveis, como o trabalho intermitente, cumulado com um ataque frontal aos sindicatos. Ou seja, atrasado, o país implementou em 2017 mudanças em voga na década de 90.
O resultado já é de conhecimento de todos. O desemprego aumentou, o rendimento dos mais pobres caiu e o país vive uma notória precarização das relações de emprego. Hoje é comum, por exemplo, que a manicure ou o cabeleireiro que trabalhem seis dias por semana no mesmo salão sejam contratados como microempreendedor individual (MEI), sem qualquer dos direitos que tinham antes. O processo se repete em todos os setores, prejudicando sempre o trabalhador mais pobre.
O racional pós Guerra Fria de que a solução para a pobreza seria pelo empreendedorismo foi tão martelada pelas escolas de negócios, a grande imprensa e a classe empresarial, que boa parte dos antes assalariados passaram a esperar cada vez menos do governo e, por aqui, não contemplam a possibilidade de reformas estruturais. Mesmo aqueles não abençoados pelo sucesso raramente recorrem à ação política e à defesa do Estado de bem estar social, uma vez que se culpam por sua pobreza, em consonância com a ideologia capitalista que aprenderam. Raramente há um questionamento sobre como se chegou a uma situação de miséria e o papel do livre mercado no resultado.
A classe C brasileira, que viveu o boom do pleno emprego entre 2003 e 2014, com direitos trabalhistas plenos, retorna agora para a pobreza e a miséria em ritmo alarmante. Atualmente, 35 milhões de brasileiros vivem com menos de R$ 246 reais por mês e aguarda-se nova queda de rendimentos para os mais pobres em 2021. Por outro lado, o radicalismo do livre mercado faz com que o exato oposto ocorra com a Classe A, em que se espera aumento de rendimentos, ampliando a desigualdade acentuada nos governos Temer e Bolsonaro.
Relações Trabalhistas e o Futuro
Os chocantes dados brasileiros da atualidade contrastam com o tom otimista do artigo de capa da revista The Economist, publicado no início de abril de 2021, dedicado ao futuro do emprego.
Segundo a reportagem, o mundo está próximo de um novo apogeu das relações de trabalho, graças a mudanças na política e na tecnologia. Pela primeira vez nas últimas décadas a política estaria focando na proteção do trabalhador, conforme evidenciariam os seguintes fatos: (i) o aumento substancial do salário mínimo nos países membros da OCDE; (ii) o apoio do governo Biden aos sindicatos e aos investimentos estatais em infraestrutura; (iii) políticas monetárias de bancos centrais cada vez mais focadas no emprego e menos na inflação; (iv) a mudança de orientação por parte das instituições multilaterais, uma vez que até mesmo o FMI, antes conhecido pela ortodoxia financeira, hoje prega a necessidade de tributação solidária.
A reportagem destaca a necessidade de uma revolução nas relações neoliberais de trabalho, uma vez que o progresso econômico e coletivo não pode ser medido por índices da bolsa de valores. Nesse sentido, a legislação trabalhista precisa ser redesenhada para se adequar ao mundo moderno, onde as pessoas trabalharão mais de casa (mesmo após o fim da pandemia), terão mais flexibilidade, e o setor de serviços empregará mais gente do que a indústria.
Assim, a mudança na legislação é condição para assegurar que profissionais da área de serviços, como motoristas, manicures, entregadores, domésticos, eletricistas etc. sejam bem remunerados e protegidos pela rede social do país caso encontram-se sem trabalho. Além disso, é essencial que o Estado ofereça educação de base e de qualidade para todos, mas proporcionando a liberdade para escolherem carreiras de trabalho manual hoje vistas com preconceito pela elite, sem que isso seja visto como fracasso ou opção por uma vida sem oportunidades e de menos recursos.
Ou seja, a famosa revista de economia e negócios londrina apregoa o exato oposto do que foi feito no Brasil pelos governos Temer e Bolsonaro, que: (i) acabaram com a política de valorização do salário mínimo; (ii) reduziram o Estado de bem estar social; (iii) desprotegeram os trabalhadores, vendendo a ilusão de que o sucesso depende exclusivamente do empreendedorismo individual; (iv) criaram e mantiveram um arcaico teto de gastos que impede o investimento estatal e, (v) aprovaram a autonomia do Banco Central, cujo objetivo de manter a inflação baixa é na legislação hierarquicamente superior ao objetivo de gerar empregos.
Nesse cenário, a pergunta que fica no ar é se há esperança de saída num futuro próximo. A resposta é positiva. Certos partidos e organizações nacionais estão muito em linha com o processo de modernização de emprego que está acontecendo mundo afora. É esperançoso notar, por exemplo, que no Plano de Reconstrução e Transformação do Brasil do Partido dos Trabalhadores, publicado em setembro de 2020, as principais propostas são exatamente: (i) o retorno à política de valorização do salário mínimo; (ii) o aumento da proteção social por meio da extensão do auxílio emergencial, o aumento do número de beneficiados pelo Bolsa Família, a expansão do seguro desemprego e a criação de um programa de renda mínima; (iii) a contratação de trabalhadores pelo Estado para trabalhos de reforma e manutenção em espaços públicos; (iv) a recomposição das capacidades das empresas estatais, e (v) a revogação de determinados pontos da reforma trabalhista de 2017.
Há evidente sintonia entre o que está escrito no programa do Partido dos Trabalhadores, o que a revista inglesa de tendência liberal apregoa, o que Biden está implementando nos Estados Unidos e o que as organizações multilaterais prescrevem para o futuro das relações de emprego. O que leva a crer ser este o caminho para a modernização das relações de trabalho no Brasil.
Conclusão
Após décadas de prevalência da mentalidade de que apenas o mercado seria suficiente para regular e estimular o emprego, o mundo vive hoje uma reviravolta, da qual o Brasil está completamente desassociado.
A receita para nos modernizarmos está clara. É preciso que trabalhadores (formais e informais) e empresários tenham consciência do retrocesso que experimentamos, mas que existe um caminho para o futuro. Isso passa por defender um novo projeto de país, mais similar ao dos países desenvolvidos, onde a cidadania plena não é restrita a um pequeno grupo. Onde o jardineiro mora na mesma rua que o gerente de banco, o eletricista viaja para Bali todo ano, o motorista de UBER visita a família em outro continente sempre que pode, o trabalhador de construção civil almoça no mesmo restaurante que o advogado empresarial, a cozinheira tem um carro do ano e assim por diante (os exemplos são colhidos da experiência pessoal do autor).
Do ponto de vista prático, para se chegar a esta realidade é fundamental diminuir o fosso que existe entre a remuneração de trabalhos vistos como intelectuais e a prestação de serviços manual e técnica. Fica aqui a sugestão da fixação de uma remuneração mínima horária para todos (independentemente da existência de relação de emprego formal), inclusive para microempreendedores individuais, domésticos e entregadores de aplicativos, atenuando algumas das consequências nefastas da reforma trabalhista de 2017 e seus impactos no aumento da miséria e da desigualdade.
O caminho para a modernização das relações de emprego está traçado. Falta o Brasil aderir. Mãos à obra!
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Referências
- Bresser-Perreira, L. (2019). Quarenta anos de desindustrialização. A terra é redonda.
- Canzian, Fernando (2021). Fenômeno dos anos Lula, classe C afunda aos milhões e cai na miséria. Folha de São Paulo, 24 de abril de 2021.
- Howell, J., Pearce, J., 2002. Civil Society & Development: A Critical Exploration. Lynne Rienner Publishers.
- Plano de Reconstrução e Transformação do Brasil, Partido dos Trabalhadores, publicado em setembro de 2020, p. 64-66.
- The Economist, 10 de abril de 2021. Riding High: A Special Report on the Future of Work
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