Em toda a história do Brasil, os militares sempre tiveram um papel de defender os privilégios, defender o “status quo”, sufocar qualquer tipo de manifestação, de rebelião popular, de movimento que provocasse ou colocasse em pauta o protagonismo e a autonomia dos movimentos sociais, como foi bem explicitado em artigo recente de nosso respeitado político Roberto Amaral, “Os militares, seus crimes e a tentação autoritária”.
Mas ainda assim, mesmo quando tiveram um papel de intervenção ditatorial, justificado sempre pelo “medo de instalação do comunismo”, as Forças Armadas, ou pelo menos parte de seus dirigentes e formuladores teóricos, defendiam algum projeto de nação. Daí alguns traços que encontramos de alguns dirigentes militares nacionalistas.
Não à toa, tivemos também, pelo menos durante aqueles períodos, o desenvolvimento de alguns setores produtivos da economia, mesmo que orientados por uma estratégia própria de articulação com interesses estrangeiros e subordinados. O investimento em infraestrutura, a expansão de fronteiras agrícolas, o desenvolvimento de setores industriais tinham por detrás uma visão de nação, mesmo que discordássemos dela.
É verdade também que por dentro dessas estratégias se realizaram muitos negócios, responsáveis por uma herança de corrupção, e de inspiração e práticas autoritárias, que marcam até hoje alguns comportamentos de nossa sociedade.
Eis que os mesmos voltam ao cenário com as mesmas justificativas para intervenção.
Como ressaltado recentemente em um artigo do professor José Luís Fiori – “Sob os escombros, as digitais de um responsável“, publicado em Terapia Política, e mais cedo alertado pelo professor Eduardo Costa Pinto em um texto para discussão na UFRJ “Bolsonaro e os Quartéis: a loucura com método”, os militares, e em especial o Exército, através de um de seus mais importantes representantes da atualidade, o General Villas Bôas, tiveram um papel decisivo no golpe institucional recente e no estado das coisas de hoje.
Novamente movidos, ou pretensamente movidos, por uma “ameaça esquerdista”, para eles configurada nos governos FHC e Lula, por uma “guerra multicultural do politicamente correto” e do “marxismo cultural”, eles deram o suporte a este movimento.
Neste novo momento, seus teóricos (acreditem, eles existem!) chegaram a falar que a esquerda agora se movia não pelo comunismo propriamente dito, mas por algo adjacente ao Movimento Comunista Internacional, algo de inspiração mais gramsciana, de disputa pela “hegemonia” da esquerda no mundo.
Nas palavras do Gal. Coutinho, um desses teóricos:
- “[…] a reforma intelectual e moral que Gramsci recomenda como instrumento da luta pela hegemonia no seio da sociedade civil já produziu efeitos muito mais profundos e danosos no Brasil do que se poderia imaginar. Em 30 anos de atuação, os intelectuais orgânicos, os neomarxistas de linha gramscista, conseguiram obter uma conformação, involuntária e despercebida, do senso comum dos integrantes da sociedade nacional às ideologias intermediárias e às palavras-de-ordem das esquerdas. Aceitação passiva do que se estabeleceu ser ‘politicamente correto’. […] O objetivo intencional desta penetração cultural é a mudança do senso comum burguês ligado às tradições históricas, morais e culturais da sociedade nacional.”
Nesta construção, algumas estratégias – que eles chamaram de “guerra de aproximações” ou “guerra de posições” – foram dando contorno, em conjunto com a elite política e econômica deste país (vide os encontros do general com o vice traíra), ao golpe de 2016.
Não à toa, depois, o representante deste movimento nas eleições posteriores seria um militar, mesmo que desqualificado enquanto patente e posição na corporação. Era o único que conseguia imprimir algum “carisma” e já era um político, mesmo que do baixo clero, há muito tempo.
O que fica claro hoje é que além de afastar do poder o tal “pensamento hegemônico de esquerda”, os militares, as Forças Armadas, não tinham como objetivo mais nada além de se colocar a serviço desses interesses econômicos da elite, e principalmente a intenção de usufruir pessoalmente da retomada do Estado, a restauração dos seus benefícios e a manutenção dos seus privilégios de casta.
Como bem destaca Fiori no seu artigo, hoje ocupam vários postos de comando de ministérios e de altos escalões. São 11 dos 23 ministros e 6.157 oficiais da ativa e da reserva ocupando postos-chaves em vários níveis de governo. Dados extraoficiais dizem que são 4.450 do exército, 3.920 da aeronáutica e 76 da marinha. O professor arremata observando que nem nos governos do PSDB e do PT os seus militantes ocuparam tantos cargos.
Não têm nenhum projeto, muito menos projeto de nação, apesar do papel preponderante que tiveram desde a preparação do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff.
O texto do professor Eduardo Costa Pinto faz um minucioso levantamento das falas, articulações e dos movimentos que foram sendo executados para desaguar neste golpe, desde manifestações dos militares da reserva até movimentos concretos de pressão sobre instituições.
Não resta dúvida, a frase do começo do artigo do José Luís Fiori, que foi dita pelo General Villas Bôas às vésperas do julgamento do habeas corpus do ex-presidente Lula, interpretada à época como pressão explícita sobre o STF – “Nessa situação que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do país e das gerações futuras. E quem está preocupado apenas com interesses pessoais” – ganhou contornos mais do que claros!
Olhando o país hoje e a posição das Forças Armadas, a pergunta “Quem realmente só está preocupado com interesses pessoais” está transparente e mais do que respondida!
Ou quer que desenhe?