O planeta Terra vive uma dura realidade: a pandemia causada pelo vírus SARS-Cov-2, popularmente conhecido como novo Coronavírus, causador da doença Covid-19. Identificado inicialmente na China e sendo altamente contagioso, o vírus se espalhou pelo mundo rapidamente e fez algumas centenas de milhares de vítimas num intervalo de poucos meses. No melhor do conhecimento científico atual, a interação entre pessoas é o principal meio de transmissão desse vírus, de modo que a estratégia mais eficaz para reduzir sua propagação demanda medidas de distanciamento social, reduzindo a circulação de boa parte da população.
As medidas de mitigação da doença são extremamente impopulares e de difícil implementação, pois têm acarretado significativa desorganização da ordem econômico-social em praticamente todos os países. A razão central é bastante óbvia, manter boa parte da população confinada enseja um custo econômico decorrente das quedas de consumo e produção, impactando na redução da renda das famílias e na perda de receita por parte das empresas. Esse custo econômico associado ao medo de contaminação (ou mesmo de morte) pela nova doença, impõe uma pressão social sobre todos os estratos da sociedade, especialmente sobre mais afetados financeiramente, o que induz um severo desgaste na popularidade dos agentes públicos e governantes que tomam as decisões administrativas de combate e mitigação da epidemia e seus efeitos.
A pandemia do Coronavírus se espalhou rapidamente pelo mundo. Países que ignoraram o problema devido aos custos econômicos que as propostas de mitigação de seus efeitos produziriam se arrependeram. Custos econômicos, políticos, sociais e pessoais advieram independentemente da vontade. Felizmente, o custo em vidas tem se mostrado bem aquém de algumas previsões iniciais (embora ainda elevado – pois na segunda década do século XXI, toda vida importa), muito em função do alarme, das políticas de distanciamento social, do empenho dos sistemas de saúde e das medidas preventivas de higiene.
Todavia, a pandemia de Covid-19 continua crescendo em diversos países, tanto em número de casos como de óbitos. Oficialmente, mais de 6,2 milhões de pessoas já foram infectadas pelo SARS-Cov-2, das quais mais de 373 mil faleceram (em 31 de maio de 2020); há cinco dias eram 5 milhões e 330 mil, respectivamente.
A taxa de letalidade varia muito entre países e regiões, pois questões demográficas, econômicas, sanitárias e sociais afetam a dinâmica da doença. Uma questão que também explica essa diferença é que não se sabe ao certo quantos são os infectados, já que muitos deles são assintomáticos e a porcentagem da testagem varia muito entre países e regiões, impedindo comparações mais acuradas do contágio e, consequentemente, da taxa de letalidade.
Quando comparamos o número de novos casos por semana com o total de casos acumulados podemos analisar a progressão da epidemia de modo robusto. Se essa razão diminui, então o contágio está diminuindo proporcionalmente. Aplicando essa abordagem ao Brasil vemos que o contágio está aumentando, o mesmo ocorre com Peru, México e Chile, entre outros. Felizmente, diversos outros países apresentam tendência de queda. Da mesma forma verificamos que, no aumento da letalidade, destacam-se negativamente Brasil, Chile, Peru, México e Rússia, ente outros.
Um aspecto que salta à vista, em todas as séries numéricas referentes à epidemia de Covid-19, é um certo atraso (entre 12 e 15 dias) entre o comportamento do número de óbitos relativamente ao comportamento observado no número de casos. Uma mudança significativa na quantidade de casos materializa-se, após duas semanas, num aumento de mortes pela doença.
O distanciamento social, vigorando em diversos municípios brasileiros desde a metade do mês de março, conseguiu reduzir o contágio e consequentemente a letalidade por um período breve. Seus efeitos foram rapidamente sentidos no contágio e aproximadamente duas semanas depois na letalidade do vírus. Porém, os índices voltaram a apresentar trajetórias ascendentes uma semana depois. Parece que há alguns aspectos da doença que impedem que a grande maioria da população entenda os motivos e a necessidade do distanciamento social e, com isso, se esforce para respeitá-lo.
Esses gatilhos do vírus parecem projetados para aumentar seus efeitos nocivos em populações com líderes negacionistas da ciência e terraplanistas (o corretor ortográfico diz que esta palavra não existe, mas como convivemos com eles, sabemos que existem, infelizmente). Por exemplo, no Brasil, a necessária coordenação nacional para o enfrentamento do problema não existe. Quando você imaginou viver num país, durante a maior pandemia dos últimos 100 anos, que não tenha ministro de saúde? E que não consiga desenhar uma política e coordenar como enfrentar o patógeno? Não imagine, é assim que estamos. Mesmo com os números oficiais da pandemia sendo muito abaixo dos números reais, devido à baixa testagem de nossa população, o Brasil é hoje o segundo país em número de infectados. O resultado é que vamos em direção à vice-liderança também no ranking de mortos pela Covid-19. Porém, como provavelmente ainda estaremos atrás dos EUA nesse quesito, alguns acharão aceitável.
O indicador mais confiável do espalhamento do Coronavírus é o número de mortes, em função da notificação compulsória. Somos o quarto país em total de mortes, até o fim da semana, seremos o terceiro e infelizmente em mais duas semanas muito provavelmente o segundo, nesse ranking infeliz. Resta saber até quando o argumento de que estamos proporcionalmente (em óbitos por milhão de habitantes) em uma posição mais confortável será usado como negação.
Que obsessão em ser primeiro! Queremos tornar a Covid-19 um patrimônio nacional? Como fizemos com a Dengue, Chikungunha, Zika e outras? Por sinal, essas doenças graves, muito graves, mataram durante todo o ano passado o que a Covid-19 mata num dia. A Covid-19 tem também ceifado mais vidas que Sarampo e H1N1 (tido como contra exemplo pelos negacionistas para minorar a pandemia de Covid-19). Outra mazela comparada à Covid-19 como argumento de sua irrelevância em óbitos é a subnutrição; estimativas indicam que essa mácula, decorrente de uma sociedade estruturalmente injusta, ceifou 15 vidas por dia no Brasil em 2019, a Covid-19 ceifará hoje no Brasil em torno de 40 vezes mais vidas. Neste momento, a Covid-19 é responsável por um terço dos óbitos diários no Brasil, usando como referência a média de óbitos diários entre os anos de 2010 e 2020 (dados do IBGE e do Portal Transparência Registro Civil).
Em abril, acompanhamos notícias indicando os estados do AM, CE, MA, PA, PE, RJ e SP como muito infectados. No Portal Transparência Registro Civil podemos conferir que, nesses estados, o número de óbitos cresceu 15,2% em abril de 2020 relativamente a abril de 2019, enquanto no resto dos estados da união ele decresceu, variou de -4,9%. No mês de março, as variações foram de 10,9% e 4,8%, respectivamente, em fevereiro foram de -0,37% e 1,3% e em janeiro foram de 1,8% e 0,8%. Se considerarmos o Brasil todo, as variações mensais dos registros de óbitos são de 1,3% em janeiro, 0,5% em fevereiro, 8% em março e 5,4% em abril. (*) Obviamente, há vários efeitos misturados nesses dados que merecem maiores análises, mas em estados com poucos casos de Covid-19 em abril e que implementaram alguma medida de distanciamento social vemos uma redução significativa das mortes.
Mesmo diante desse cenário de crise aguda, alguns de nossos governantes flertam com a irresponsabilidade. Eles não têm se esforçado em orientar a população para que o combate à pandemia possa ser mais efetivo, porém têm apresentado explicações estapafúrdias e teses criativas para justificar a ineficácia e letargia de suas ações.
Boa parte dos dissonantes cognitivos tem advogado pela abertura imediata de todo comércio, retomando assim à vida normal, da qual foram privados por conta de uma “gripezinha”. Alguns outros, não desconexos da realidade e com uma postura bem mais sensata, tem capitaneado um grande esforço coletivo em busca de estratégias inteligentes para retornar (gradativamente) às atividades econômicas, trilhando assim uma lenta rota em direção à normalidade. Não há hipótese para a abertura das atividades econômicas não seguir a segunda vertente. De todo modo, há de se considerar uma premissa básica: qualquer estratégia de abertura só pode ser iniciada quando a propagação da doença estiver em ritmo de redução (por algumas semanas seguidas). Esse não é o caso hoje na maioria dos estados brasileiros.
A preocupação de governantes com a questão econômica é legítima e muito importante, pois uma crise econômica também está em curso. Mas os movimentos de reabertura devem considerar especificidades regionais da pandemia como o progresso do contágio pelo vírus e a ocupação do sistema de saúde. Por outro lado, a imposição de medidas de higiene (máscaras, transportes, etc.) e de testagem da população para a identificação de casos e contenção do contágio são fundamentais.
Sem uma testagem em grande escala da população, para detectar casos de infectados assintomáticos, uma “volta à normalidade” com segurança é inviável. A testagem nos permite identificar, aleatoriamente, casos infectados e solicitar sua quarentena. Isso, consequentemente, reduz a interação social de indivíduos contaminados com pessoas potencialmente suscetíveis à doença, retardando e reduzindo a propagação do vírus. Esse é um possível caminho para podermos retomar (parcialmente) as atividades econômicas, minorando dessa forma os terríveis efeitos sociais e financeiros que já afetam nosso povo, evitando, contudo, explosões incontroláveis do contágio pelo novo Coronavírus.
Surpreende que haja encaminhamentos para reaberturas sem explicitar claramente essas medidas, em especial, como realizaremos a testagem. Há um grande problema econômico e logístico: conseguimos dispor de testes na escala e no tempo necessários? Mas há também problemas procedimentais: podemos parar qualquer um na rua e realizar os testes? E uma vez que alguém testou positivo, como procedemos? Que falta faz uma coordenação nacional?
Há caminhos para reduzir o distanciamento social e retomar as atividades. Mas se ignorarmos os procedimentos necessários, no futuro, observaremos não somente óbitos decorrentes dos mais de 150 mil infectados nas duas últimas semanas, mas dos que virão em decorrência de nosso descuido. Que falta faz uma coordenação nacional.
(*) Só comparamos dois anos, pois os dados até 2018, disponibilizados pelo IBGE, quando comparados à série do Portal Transparência Registro Civil apresentam uma alteração de patamar em quase todos os estados e não as taxas de crescimento anual superior à esperada (0,8-1,0%).