Um dos melhores comentários sobre a pandemia foi feito pelo historiador israelense Yuval Noah Harari. Não me incomodo de repeti-lo, já que tenho o olhar parecido sobre os acontecimentos. Muitos quiseram saber dele se, depois dessa hecatombe, o mundo será melhor ou pior. Harari explicou que o futuro dependerá das nossas decisões de hoje. Se as escolhas forem bem feitas, o vírus será derrotado e o acúmulo de conhecimento científico atual, particularmente na área da saúde, nos permitirá sonhar com um mundo melhor ao fim de tudo, quem sabe mais solidário e mais preocupado com as desigualdades.
No entanto, os sinais emitidos por algumas lideranças políticas – como Donald Trump, para o mundo, e Jair Bolsonaro, para o Brasil – nos deixam apreensivos. Ambos parecem mais preocupados com os próprios interesses de manutenção no poder do que com o necessário enfrentamento ao vírus. E tratam o combate intransigente à epidemia como uma campanha contra seus governos. O inimigo não seria o vírus, mas os outros – no caso, todos os indivíduos que não se enquadram nos escaninhos de seus amigos pessoais e familiares. Harari mais uma vez está correto ao afirmar que as escolhas dos governantes, especialmente a do americano e do brasileiro, estão baseadas no ódio, na ganância e no obscurantismo, em contraste com o desejo da grande maioria da humanidade, que gostaria de estar assistindo à superação da crise pela solidariedade, pelo respeito ao outro e ao conhecimento científico.
No Brasil, a Covid-19 não ataca apenas a saúde das pessoas. Gerou um ambiente de entropia propício à ameaçadora propagação de dois outros vírus: um que ataca cotidianamente a jovem democracia brasileira e outro, oportunista, que se sentiu à vontade para debilitar ainda mais a já vulnerável economia do país. Circunstâncias históricas geraram essa combinação perversa para a vida das pessoas.
No campo da saúde, em pleno andamento da batalha, o ministro Henrique Mandetta foi demitido simplesmente porque era um advogado intransigente do iluminismo científico, algo inaceitável para o raciocínio obscurantista. Apesar disso, o país tem conseguido algumas pequenas vitórias que salvam vidas. Essas vitórias se devem sobretudo às ações destemidas dos trabalhadores do sistema de saúde, e aos governadores e prefeitos que não baixaram a cabeça para as ameaças do governo federal.
As instituições da República, por outro lado, estão resistindo aos chamados de nosso Mefistófeles, que em meio à guerra pela vida usa parte de seu tempo para atacar os poderes Legislativo e Judiciário, pilares do sistema democrático, intimidando a ordem constitucional, com o objetivo de quebrar o pacto federativo. Sua eleição, legítima, não lhe confere poderes para tramar contra a democracia. O tempo que deveria usar para combater o vírus e extirpar o parasita que corrói o futuro da economia do país está sendo dedicado, como Pandora, para disseminar males e manter presa a esperança.
Se existe um lado positivo disso tudo, é que nosso sistema democrático pode sair fortalecido, pois a sociedade tem mostrado musculatura e união para repelir as incursões de alguns poucos à ordem constitucional. O Congresso Nacional, o Judiciário, a imprensa, a OAB e centenas de instituições da sociedade civil não se calaram, o que é animador. Não tenho poderes de prever o futuro, mas a plena convicção de que as forças democráticas – majoritárias, com toda a certeza – saberão se unir para barrar a ofensiva extemporânea contra o Brasil.