O Day After com Trump
I

A uma atenta leitora lhe pareceu estranha a utilização no plural da palavra crepúsculo no título do artigo anterior. Aqui a resposta que dei a ela. Crepúsculos da democracia porque uma categoria sociológica ou fenômeno histórico de tamanha dimensão muito dificilmente desaparece num único golpe, de uma só vez. A Democracia tal como a conhecemos na era moderna está sendo demolida lentamente, peça por peça, pedaço a pedaço. Portanto, são vários os crepúsculos. Os golpes que a atingem e a fazem ir desaparecendo variam na forma, assim como na contundência. Não é apenas o crescimento brutal da ultradireita no Brasil, nos Estados Unidos, na Europa, em quase todo o mundo, que a fazem sangrar. Também a ataca a direita suave (cujos membros são também conhecidos como liberais) quando, por exemplo, incrementa os mecanismos de controle social dentro do Estado, abrindo as portas para o que, no final das contas, não será mais que um Estado Policial, condição na qual a democracia parlamentar será apenas um adereço para o espetáculo do engodo permanente.

II

A campanha presidencial nos Estados Unidos entra na reta final, muito mais tensionada que habitualmente, com os concorrentes apelando a todo e qualquer discurso que julgam capaz de tirar votos do adversário e/ou ganhar a simpatia do eleitor indeciso. Poucos dias atrás, a candidata democrata deu uma respirada profunda para ganhar coragem e, saindo da mesmice, finalmente lançou contra o oponente um qualificativo que não é de hoje vinha sendo aqui e ali associado à figura do bilionário ex-presidente. Kamala Harris, no entanto, preferiu se escudar nos comentários sobre Trump feitos por John Kelly, ex-chefe de gabinete do republicano na Casa Branca. Numa entrevista ao The New York Times Kelly descreveu Trump como alguém que “certamente se enquadra na definição geral de fascista”. Pouco depois, quando lhe perguntaram se acreditava mesmo que Trump era um “fascista”, Harris respondeu: “Sim, acredito”. Dado o sinal de partida, a máquina democrata começou a operar para reforçar a mensagem emitida pela comandante.  Quase que imediatamente, no mesmo NYT, um extenso artigo assinado pela jornalista e escritora Elisabeth Zerofsky desencavava as análises do historiador Robert Paxton (92 anos) sobre o fascismo clássico europeu para logo em seguida indagar sobre as possíveis aproximações com o trumpismo. Paxton, que em 1972 publicou Vichy France: Old Guard and New Order, 1940-1944 e é considerado em seu país uma autoridade mundial no estudo dos regimes fascistas na Europa, voltou ao tema com mais contundência em A Anatomia do Fascismo (2004). Num artigo de 2017, o historiador, muito oportunamente, alertava para o uso abusivo e indiscriminado do termo fascismo/fascista. Segundo ele, diz a matéria do NYT, “a palavra foi usada com tal liberalidade – ‘toda a gente de quem não se gosta é fascista’ – que perdeu seu poder de iluminar”. E quanto ao trumpismo, dizia em 2017, “apesar das semelhanças superficiais, havia demasiadas dessemelhanças”. Mas de lá para cá muita coisa mudou, é o que quer destacar o artigo de Zerofsky publicado pelo Times a menos de 15 dias da eleição. E o ponto de viragem foi o 6 de janeiro de 2021, a invasão do Capitólio pelas hordas trumpistas. Assim, numa coluna publicada online na revista Newsweek no dia 11 janeiro de 2021, o historiador escreveu “que a invasão… retira a minha objeção ao rótulo de fascista… O rótulo parece agora não só aceitável como necessário.”

III

Para além das definições sócio-políticas, da justeza ou não de determinados rótulos e dos interesses embutidos na sua propagação, o que realmente interessa e preocupa com a possibilidade de um novo mandato para o oligarca bilionário, após a primeira experiência no comando do Império e, em seguida, seu ensaio de golpe de Estado, são os limites que ele e seus seguidores estarão dispostos a aceitar no mando da potência imperial. Mas sejamos claros: preocupa a apenas alguns, a uns tantos, uns bem poucos. Trump, assim como seu mais recente e fervoroso aliado Elon Musk (et caterva), é, como já disse anteriormente, figura de culto não apenas para os de sua classe e status (pouquíssimos), mas para um sem número de encantados admiradores dentro e fora dos Estados Unidos. Uma duplicata de Khomeini made in Las Vegas conduzindo multidões de fiéis.

IV

Em agosto de 2023, o ex-presidente e agora candidato foi indiciado por quatro acusações decorrentes dos ataques ao Capitólio em 6 de janeiro de 2021. Em resposta, alegou basicamente que não podia ser processado por seus atos oficiais como presidente. O caso terminou na Suprema Corte e a pergunta a ser respondida pelos juízes era: “Um ex-presidente goza de imunidade presidencial contra processos criminais por conduta que supostamente envolva atos oficiais durante seu mandato e, em caso afirmativo, até que ponto?” O placar da decisão foi de 6 a 3 a favor de Trump. Não vou obviamente entrar nas larguíssimas argumentações técnicas e nos detalhes jurídicos da causa, até porque não é coisa que nós, os cidadãos comuns, daqui ou de lá, possamos compreender. Mas dois ou três comentários de gente entranhada nos assuntos da máxima corte de justiça estadunidense serão suficientes para dar a exata noção das implicações de tal placar. De acordo com o raciocínio da maioria, escreve um desses especialistas, “o presidente dos Estados Unidos no exercício de suas funções… estará isento de processos criminais. Ordena que a equipe 6 da Navy SEAL assassine um rival político: e está imune. Organiza um golpe militar para se manter no poder: e está imune. Aceita suborno em troca de um ato de perdão presidencial: e está imune.” (Quem quiser se aprofundar no detalhamento da decisão e das críticas que imediatamente provocaram vale a pena acessar o The 5-4 Podcast.  Conduzido por Rhiannon Hamam, Michael Linoff e Peter Shamshiri, é dedicado a comentar e analisar decisões passadas e recentes da Suprema Corte dos Estados Unidos. O episódio que trata especificamente do caso Trump v. Estados Unidos foi ao ar no dia 2 de julho de 2024.) Para esses comentaristas, o mais relevante no resultado da decisão é “o que sinaliza para o (eventual) segundo mandato de Trump (…)”. Trata-se de um sinal verde “para todos os sonhos mais loucos” de como seria esse segundo mandato, “e um sinal vermelho para qualquer um que pensasse que os tribunais… forneceriam algum controle” sobre a presidência do megaempresário.

V

Todos se lembrarão que um dos carros alegóricos que comandava o espetáculo no primeiro mandato de Donald Trump (2017-2021) transportava, lá no topo, a imagem do ideólogo/marqueteiro Steve Bannon. Alvo de inúmeros processos judiciais atualmente em curso, Bannon estava na cadeia desde julho, condenado por “obstrução dos poderes de investigação do Congresso”.  Mal saído da cana na última quarta-feira, 30 de outubro, já se pôs a trabalhar, reativando seu podcast The War Room, considerado “um dos principais veiculadores de desinformação eleitoral dos Estados Unidos” – há notícias de que a desinformação intencional dobrou nesses últimos dias da campanha. Mesmo assim, a estrela do palco agora é definitivamente de outra dimensão. Para usar a linguagem que eles mesmos usariam, um bilionário do primeiro time (O Homem Mais Rico do Mundo), um par à altura da grandeza do próprio protagonista – ao invés de um arrivista que emergiu do submundo. São consanguíneos, membros da mesma estirpe e estão dispostos e preparados para assumirem o controle do Império, e para além. O céu é, sim, o limite e já o estão ocupando. Para si e para os seus. Encastelados no aparato de um Estado quase que inimaginavelmente poderoso, prontos a colocar a democracia representativa, que a rigor sempre esteve a serviço da base de acumulação das fortunas que lhes antecederam, como mero adereço para o exercício de um poder de mando e manipulação das vontades praticamente imensurável. Prestar contas a quem e como, se mantém sob um autêntico tacão de ferro até os já muitíssimos bem comportados meios de comunicação que poderiam (e deveriam), aqui e ali, vez ou outra, vigiar seus atos em nome dos cidadãos (citoyens, como se diria nos idos de 1789)? Portanto, não é mero acaso que a pouco mais de uma semana do dia da votação de uma eleição tão acirrada e, em vários sentidos, particularmente significativa, Jeff Bezzos (O Segundo Homem Mais Rico do Mundo), dono entre outras coisas do The Washington Post, tradicionalmente democrata, determinou que o jornal deixasse de apontar seu candidato para presidente, uma tradição iniciada meio século atrás.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
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