Presente de um amigo, há poucos dias terminei de ler O povo contra a democracia: por que nossa liberdade corre perigo e como salvá-la (2018), obra do cientista político alemão Yascha Mounk, radicado nos Estados Unidos e doutor pela Universidade de Harvard.

Mounk faz uma análise lúcida, muito bem documentada com pesquisas, das causas que levaram a maioria dos países do mundo à perda de confiança na democracia liberal, tornando possível a ascensão de um populismo autoritário de direita ou extrema direita, que tem chegado ao poder através do voto popular. Ele observa que os países com as quatro maiores populações do mundo são hoje governados por populistas autoritários. Nas últimas duas décadas, esses bárbaros representantes do retrocesso têm tido sucesso: incivilizados, quando derrotados mesmo numa disputa menor reagem com violência, viram a mesa, descumprem as regras, restringem a liberdade, desrespeitam a Constituição e, ainda assim, vencem as eleições.

O autor observa que no longo período que se estende do pós-guerra a meados dos anos 80, a renda familiar do americano médio quadruplicou. A partir do final daquela década, esse quadro se inverte: a maioria dos países começou a conviver com baixo ou nulo crescimento, aumento do desemprego e queda dos salários. O cenário sombrio provocou o desalento. Os jovens começaram a temer que o padrão de vida desfrutado por seus pais e avós poderia se deteriorar, e passaram a encarar o futuro com crescente apreensão. Além disso, frequentes escândalos e denúncias de corrupção diminuíram a confiança nos representantes do Congresso, nos governantes e até no Poder Judiciário. O nacionalismo recrudesceu, aumentou a intolerância e a rejeição às minorias gays, lésbicas, indígenas. O imigrante passou a ser visto como inimigo, uma crescente ameaça ao emprego.

A promessa de Trump de controlar a imigração de mexicanos através da construção de um gigantesco muro contribuiu para sua vitória. A criação de barreiras alfandegárias foi considerada uma providência adequada de defesa das empresas e do emprego no país, visão estreita que ignora que o crescimento do comércio mundial tem importância fundamental para o crescimento econômico. Até a evolução tecnológica foi vista com maus olhos: a automação, como uma ameaça à manutenção do emprego.

Nos Estados Unidos, os que acreditavam que a democracia era fundamental para o país caiu assustadoramente. Em 1930 era compartilhada por 71% da população. Cinquenta anos depois, em 1980, por apenas 29%!

Mounk, num breve prefácio à edição brasileira, falou sobre a ameaça que o governo Bolsonaro representa para o país. É claro que no curto espaço de um prefácio não poderia caracterizar o populismo brasileiro que, observa Mino Carta, é extremamente peculiar, vergonhoso. Este populismo de direita que chegou ao poder no Brasil através de um golpe colocou na presidência um demente. Mas, ao contrário do que aconteceu nos países desenvolvidos, aqui o nacionalismo não se fortaleceu. Muito pelo contrário. Uma elite rastaquera, de visão estreita, destituída de qualquer sentimento de brasilidade, entreguista, está se curvando vergonhosamente aos interesses norte-americanos. O desgoverno Bolsonaro está destruindo a Amazônia e entregando a preço de banana o patrimônio nacional. Uma tragédia.

Faltou à obra de Mounk um olhar crítico ao neoliberalismo econômico que, na contramão da história, é o grande responsável pela crise atual que ameaça a própria democracia liberal. Esse neoliberalismo ainda dominante é sustentado pela hegemonia do capital financeiro, que defende os juros altos e vive deles e do arrocho fiscal. Keynes, há quase 80 anos, ensinou que o Estado deve ter um papel compensatório na economia. Em períodos de crescimento econômico acelerado, deve “pisar no freio”: aumentar juros e diminuir o investimento público. Nos períodos de recessão, deve fazer o oposto: aumentar o investimento e reduzir juros. Keynes ensinou, também, que o investimento depende de duas variáveis: da expectativa de lucro futuro – que ele chamou de eficiência marginal do capital – e da taxa juros. Sempre que a eficiência marginal do capital for menor do que a taxa de juros, não haverá investimento e vice-versa.

Thomas Piketty, no seu já clássico O capital no século XXI (2013), demonstrou de forma cabal que o capitalismo financeiro concentra cada vez mais a renda e a riqueza no mundo. A brutal desigualdade é a causa da miséria de bilhões de pessoas que não conseguem viver dignamente, incapazes de satisfazer suas necessidades básicas. Sabe-se, também, que os herdeiros de fortunas milionárias, beneficiados pelos elevados juros que o neoliberalismo defende e impõe, são atraídos pela facilidade de ganhos especulativos e se recusam a assumir o trabalho e os riscos exigidos pela atividade produtiva. O capital improdutivo cresce. O resultado é menos produção, mais recessão. A consequência é a corrosão da base econômica que favorece o avanço do populismo autoritário.

Por fim, a título de conclusão, cabe observar que a democracia liberal, embora desejável, é insuficiente. Numa sociedade extremamente desigual não existe democracia de fato. Os direitos da maioria desvalida são mera ficção, só existem no papel. Uma prova é que negros representam 71%, mais de dois terços da população carcerária dos Estados Unidos. Quase metade cumpre pena sem terem sidos julgados. Apesar da Constituição do país ter abolido o trabalho escravo há um século e meio, ele existe ainda graças à vigência da Décima Terceira Emenda.

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[NR: Neste 2020, em parceria com o neozelandês Justin Pemberton, Thomas Piketty transformou seu livro O capital no século XXI no documentário homônimo, com 1h40 de duração. Essa versão de sua crítica ao capitalismo foi exibida no Brasil no Festival Varilux de Cinema Francês deste ano.]