Resenha
O desenvolvimento brasileiro recente – Da crítica da economia política ao planejamento urbano e regional crítico. De Jorge Natal
Autores-colaboradores: Eduardo N. Stotz, Helcio de Medeiros Jr. E Priscila Góes Pereira.
Preâmbulo
Embora haja uma série de assuntos a atazanar intelectualmente a cabeça deste escriba – de maneira saudável, diga-se -, entendo que o livro ora apresentado traz à baila um mesmo e recorrente temário da minha já longa vida acadêmica: o da formação social brasileira em si e vis a vis a sua inscrição na economia/sociedade mundial. Também introdutoriamente vale registrar que os capítulos que compõem o livro possuem certa unidade analítica teórico-metodológica, como o leitor constatará ao longo das suas 280 páginas (organizadas em cinco Partes e nove Capítulos). Em adição, assinale-se que eles foram escritos originalmente como artigos avulsos nas últimas duas décadas (com uma exceção, o capítulo III).
A estrutura do livro
No primeiro capítulo, escrito junto com o professor Dr. Eduardo Stotz (da Fiocruz-RJ), considera-se o temário liberalismo, neoliberalismo e capitalismo de sorte a mostrar tanto a trajetória reflexiva acerca das duas referências iniciais, nos marcos do referido modo de organização da vida social (a terceira referência), quanto o seu sentido maior, qual seja, o de disputar os rumos históricos desse mesmo modo através das suas afirmações hegemônicas aos seus respectivos tempos. É dizer: tolher qualquer possibilidade de aparecimento com ‘peso’ societário de visões de mundo alternativas aos referidos liberalismo e neoliberalismo.
Passo seguinte, examina-se o liberalismo revisitado, leia-se, o neoliberalismo, enquanto elemento indispensável para a afirmação nas quatro décadas mais recentes de um capitalismo verdadeiramente totalitário com a imensa maioria da humanidade – e não apenas com os trabalhadores, mas também com inúmeros outros estratos sociais, como o são, por exemplo, os pequenos e médios empresários, as chamadas ‘classes médias’ etc.
E fechando a Parte 1 do livro, denominada de as “Macrotransformações do capitalismo mundial”, elas são analisadas de “per se”, bem como estendidas para algumas das suas manifestações no Brasil. Nesse capítulo (II), intitulado “Mudanças recentes do capitalismo mundial e brasileiro” chamo atenção para aspectos nucleares ou estruturantes mesmo como o são o advento da Terceira Revolução Científica e Tecnológica (de base informacional lastreada na microeletrônica), da Financeirização da Riqueza (pelos economistas pós-keynesianos) e do Neoliberalismo (dadas as mudanças então perpetradas no que tange ao papel do Estado).
Isto posto, defendo que o mundo contemporâneo é ininteligível sem a devida consideração imbricada dessas três dimensões do capitalismo hodierno. Também chamo atenção para o fato desse amplo e complexo processo poder ser apreendido nas mudanças em curso nos territórios das diversas partes do mundo. De outra forma: aponto que essas macrotransformações vêm alcançando praticamente todo o planeta, tornando assim seus espaços em ‘peças’ cruciais da reprodução ampliada do próprio capital. Como corolário, destaco que o emprego recorrente no nosso país de termos como “ilhas de excelência”, fragmentação político-institucional, cidades competitivas, cidades mundiais, planejamento estratégico de cidades, reconfiguração espacial etc. são ao fim e ao cabo expressões manifestas ao nível territorial das macromudanças em exame.
Na parte 2 do livro, “Brasil e reformas institucionais: o rolo compressor dos neoliberais e ‘escravocratas’ brasileiros”, em seu capítulo II (“A revisão constitucional brasileira de 1994 – memórias de uma ensaio conservador”), resgato parte do debate revisional da Constituição de 1988, ocorrido em 1993-94, no qual muito do que se viveu no Brasil nos anos 1990 e, especialmente, vive-se ainda nos dias de hoje, lá estavam presentes; qual seja, a disputa travada entre os favoráveis às práxis liberalizantes ou pró-mercado e os que a elas se antepunham.
Naquele contexto os liberais não lograram êxito em seus intentos por conta de diversos constrangimentos internos, mas, passados alguns anos, como se sabe, eles acabaram obtendo vitórias expressivas. Mais detidamente: eles obtiveram tais vitórias particularmente quando da presidência do senhor Fernando Henrique Cardoso e no momento por conta da força política e social adquirida pelos que sob esse discurso-credo (e de um suposto combate à corrupção!) provocaram a ruptura-institucional de 2016.
Uma das expressões do anotado, senão a principal, é a reforma trabalhista aprovada em 2017, embasada no argumento de que ela contribuiria para a recuperação do emprego e da renda nacional. Tendo-a em vista ela é examinada teoricamente no Capítulo IV. Nele, mostra-se que a base teórica implícita, de corte neoclássico, é seriamente contraditada pela abordagem de mestres do pensamento econômico como o são o burguês Keynes e o ‘marxista’ Kalecki. Enfim: apoiado nesses dois últimos autores defendo que essa reforma é um engodo na medida em que ela não tem absolutamente como contribuir para o aumento do emprego e da renda nacional (antes pelo contrário) e muito menos, no tempo, sequer para o crescimento da massa de lucros como ingênua e/ou ideologicamente supunham muitos empresários e diversas entidades patronais!
Na Parte 3 do livro, nomeada “Desenvolvimento local – parte da academia do campo da espaçologia/planejamento urbano e regional encampa o mainstream”, constam igualmente dois capítulos. No primeiro (V), escrito em parceria com a Dra. Priscila Góes Pereira, “A que vem o desenvolvimento local: um aporte à luz da crítica da economia política e da defesa de uma práxis transescalar”, sustenta-se que ele ‘nasce’ nos anos 1990 (grosso modo) enfeixado no arsenal teórico e propositivo que denominamos de Globalização Neoliberal Financeirizada. Uma dessas expressões é a sua rejeição a qualquer discussão sobre o binômio Estado-Projeto Nacional de Desenvolvimento.
Nesse sentido, assevera-se que o desenvolvimento local é marcadamente antípoda à imensa maioria das análises dos economistas que ocupam lugar de destaque na chamada História do Pensamento Econômico – com a exceção notória dos neoclássicos. Embora ignorados pelos delistas (vide observação efetuada logo em seguida), mostra-se ali que nem todos os economistas são ‘tão macros’ como acusam os referidos partidários do Desenvolvimento Local (vide o termo delista acima anotado), posto existirem aqueles que pensam a temática do desenvolvimento em dados espaços microrrecortados (alguns inclusive articulando-os a escalas maiores ou mesmo a projetos nacionais de desenvolvimento).
Por outro lado, corretamente, os pioneiros do tema em tela defendem que o desenvolvimento econômico do pós-2ª Guerra Mundial nem incluía a todas as pessoas nem a todos os lugares; e, talvez mais importante, chamavam atenção para a necessidade da consideração de uma dimensão analítica crucial, a da participação popular na definição e na implementação de cada um dos projetos de desenvolvimento ditos locais.
Por fim, aponta-se que seria um erro não articular parte da contribuição dos delistas, especialmente essa última, com o pensar e agir nacionalmente, bem como não conferir ao Estado papel crucial no processo em discussão (o que, salvo exceções, é ignorado pelo pessoal do desenvolvimento local).
Já no Capítulo VI dessa Parte 3, intitulado “Desenvolvimento local – ou sobre exegeses ideológicas, lutas hegemônicas e descaminhos societários”, examino o tema desenvolvimento econômico em sua relação no tempo com as estruturas produtivas e com a produção espacial. Em seguida, retomo o clássico tema do desenvolvimento econômico em sua interação com o do Estado face à história do pensamento econômico.
No terceiro movimento analítico, avanço a discussão do desenvolvimento econômico outra vez recorrendo à história do pensamento econômico, tendo em conta a questão das escalas analíticas, e aponto para as mudanças em curso atinentes a esse tema. Por fim, mostro que as inflexões discursivas atinentes ao eixos analítico-reflexivos anteriores (estruturas produtivas, Estado e práxis escalares) contribuíram, infeliz e perversamente, para a exegética afirmação contemporânea do desenvolvimento local.
Na Parte 4, intitulada “Por falar na Escola de Economia da Unicamp”, igualmente constam dois capítulos. No primeiro, o de número VII (“Notas sobre um homem e intelectual exemplar, o professor Wilson Cano”), presto uma singela homenagem ao ilustre professor Cano. Procurei nesse capítulo ressaltar que ele, um dos artífices da criação da referida Escola, se notabiliza como o principal estudioso da chamada questão regional brasileira (seguindo em certa medida os passos de outro mestre, o professor Celso Furtado). Mas não ‘apenas’, posto que ele inscreve essa discussão no âmbito da reprodução societária do Brasil, em sua articulação com o avanço da mercantilização verificada a partir do último quartel do século XIX no estado de São Paulo, e que sendo assim sua contribuição inequivocamente transcende à disciplina Economia.
Outros aportes e contribuições de mestre Wilson Cano também são arrolados, porém nesse capítulo chamo atenção especial para as minhas próprias dívidas pessoais e profissionais com o apontado professor, sublinhando ali a sua importância para o meu definitivo interesse docente e de pesquisa na área dos chamados ‘desequilíbrios regionais’ brasileiros – que neste livro aparece de maneira destacada no Capítulo IX (sobre a Cidade do Rio de Janeiro).
No capítulo VIII (o tema “Desenvolvimento econômico no Brasil: estudo ocioso ou necessidade urgente?”) destaco a importância da supramencionada Escola de Campinas na medida em que ela participou ativamente do debate sobre a história da temática do desenvolvimento nacional em sua estreita imbricação com a da própria formação social do país, e sem perder de vista as mudanças operadas na economia mundial. Mais: tudo isso assentado nas contribuições seminais dos pais fundadores do pensamento social brasileiro e mundial.
É nesses termos que alinho o rico debate sobre os grandes projetos nacionais de desenvolvimento (com seus acertos e erros), tomando como ponto de partida as ricas diatribes que envolveram Roberto Simonsen e Eugênio Gudin, ressaltando o quanto elas são notáveis, principalmente quando comparadas com as enfadonhas análises conjunturais e boa parte das elaborações teóricas contemporâneas – no mais das vezes tão equivocadas cientificamente quanto, por causa, socialmente danosas.
Por último, na Parte 5 (“Reflexões sobre o Rio”), em capítulo único, o de número IX (“Um ensaio sobre o Rio de Janeiro – história, atualidade e possíveis futuros”), em parceria com o Doutor Helcio Medeiros Jr. (IPP-RJ), também estudioso das ‘coisas do Rio’, examina-se em perspectivas histórica temas como o da população e espaço, o da estrutura societária, o das relações do Rio com o Brasil e o Mundo e, por último, o da economia. Como sugerido no parágrafo anterior, evidencia-se com esse capítulo minha dívida com a tradição na qual fui educado como economista uma vez que nele articula-se a ‘perna’ estudo regional com a do desenvolvimento. Ademais, seguindo essa tradição, são apresentadas algumas propostas de políticas públicas entendidas por nós como capazes de reerguer o Rio uma vez que mesmo passados 60 anos, ou seja, desde a mudança da capital federal para Brasília, essa cidade continua decisiva para a refundação tão necessária do Brasil contemporâneo (…).
À guisa de conclusão
Este livro começou a ser estruturado em 2017, tendo sido publicado apenas em 2021. Razões diversas explicam esse, digamos, retardo: desânimo com os rumos do país, dificuldades técnicas mesmo (revisão etc.), problema de saúde e pandemia. Mas neste início de ano entendi que não cabia mais procrastinar meu registro, contido no livro, desses difíceis tempos históricos. Foi assim que finalmente autorizei a edição do livro – pela Letra Capital.
Nesses termos, numa tentativa de reunir o sentido do livro resgato aqui, dentre outras, cinco epígrafes nele contidas: “As notícias são palavras, mas nunca se chega a saber se palavras são notícias” (José Saramago); “As lutas políticas são também lutas discursivas” (Francisco de Oliveira); “Em última análise, também os processos de desenvolvimento são lutas de dominação” (Max Weber); “Seria uma atitude muito ingênua esperar que as classes dominantes desenvolvessem uma forma de educação que permitisse às classes dominadas perceberem as injustiças sociais de modo crítico” (Paulo Freire); e, “Ser otimista no Brasil é ingenuidade. Ser pessimista é ficar paralisado. É preciso ser realista esperançoso” (Ariano Suassuna, em versão livre). Boa leitura, enfim, aos que se aventurarem pelas referidas 280 páginas deste meu último trabalho.
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