Em um de seus famosos seminários no começo dos anos 1970, o psiquiatra francês Jacques Lacan apresentou a uma plateia de residentes do Hospital Sainte-Anne o conceito de uma personalidade por ele chamada de canalha; em sua interpretação uma variante associada ao caráter psicopata. O renomado médico transmitiu à sua jovem audiência a recomendação de que às pessoas portadoras dessa patologia fosse negado o tratamento psicanalítico porque a análise poderia dar-lhes instrumentos que contribuíssem para a consecução de seus propósitos malignos. Até os dias atuais, ensina o conhecimento clínico, a única abordagem possível aos portadores do transtorno de personalidade antissocial, antes denominados psicopatas, é a contenção de seus impulsos por meio de fármacos, manejo de contingência e isolamento. Não há nenhuma perspectiva de cura.

Muitos autores e profissionais da área das Ciências Psi têm apontado a conformidade dessa psicopatologia com a índole do genocida que governa o Brasil. Seu caráter deformado é do conhecimento do meio político há 30 anos, quando, após ser excluído do Exército por mentira, indisciplina e conspiração para o terrorismo, iniciou sua “exitosa” carreira parlamentar – um recorrido de agressões, verborragia e violência em defesa da ditadura, da tortura e de seus agentes, criminosos de lesa-humanidade. Mesmo assim, tal como ocorrera à burguesia alemã apoiando o nazismo em 1933, não lhe foi negado suporte para tornar-se presidente. A opção oportunista de que seu apelo eleitoral poderia derrotar a esquerda foi assumida cinicamente pela classe dominante e seus seguidores da classe média.

Sua candidatura começou a ser construída ainda em 2014, quando o que veio a se constituir em um grupamento militar de apoio no escalão superior das Forças Armadas, aquele dos coronéis e oficiais generais, passou a lhe franquear o acesso à caserna. Na sequência, na esteira da parcialidade do judiciário da Lava Jato, o movimento contra Lula e o PT para afastá-los do poder e impedir sua participação no jogo eleitoral produziu o impeachment de Dilma e o ambiente em que se realizaram as eleições de 2018.

A coalizão então vencedora reunia, além do citado partido militar, um agrupamento de extrema direita que se organizou no PSL e em outros partidos e que conseguiu derrotar eleitoralmente a direita liberal do PMDB e do PSDB. A esse bando se associou uma facção cristã neopentecostal, reacionária nos costumes e na política. A coalizão de índole fascista obteve o apoio quase unânime da classe dominante do campo, da indústria, do comércio e serviços e do setor financeiro, e também da classe média.

Após uma intensa luta política, que tem sua origem no chamado Mensalão em 2006 e nas manifestações de junho de 2013, a direita parlamentar, as classes dominantes e a mídia comercial conseguiram reduzir o apoio do PT e da esquerda na sociedade, conseguindo contaminar sua imagem popular com a marca da corrupção e do mau governo. Os desvios da Petrobras e a crise econômica foram vistos como criados por Lula e Dilma. Na sequência, o canalha venceu as eleições, foi empossado na presidência do Brasil e iniciou seu desgoverno anunciando, em viagem aos EUA no começo de 2019, que antes de erigir alguma coisa, precisava destruir muito.

O que seguiu é a obra mais nefasta que qualquer administração produziu na história do país: a maior crise econômica em um século, a desorganização, desvirtuamento e corrupção da administração pública e o descalabro sanitário da pandemia fora de controle e, pior, disseminada de forma intencional pelo governo federal. O primeiro dever de qualquer Estado, a defesa de seu povo, é negado pelo incumbente do Planalto. Para uma parcela cada vez maior da classe média e da classe dominante, vai ficando claro que desse desgoverno só se pode esperar a continuidade do desastre de proporções catastróficas que vem se desenvolvendo diante dos olhos atônitos da população, desprotegida e abandonada.

Em uma circunstância normal de vigência dos mecanismos republicanos de controle democrático sobre a ação dos poderes constituídos, um governante que acumula dezenas de crimes praticados no e em razão do exercício de seu mandato seria legalmente destituído. O fato de isso ainda não ter acontecido é o maior sinal da doença e fraqueza que acometem as instituições nacionais. De novo, a exemplo da decadência alemã que produziu o nazismo, a corrupção por dentro foi destruindo as instituições da república: o juízo parcial de Curitiba, o golpe parlamentar contra Dilma, a invasão do espaço da política por militares da ativa foram aceitos como se não representassem a destruição do estado democrático de direito.

Apenas neste terceiro ano de um mandato trágico, e de forma inexplicavelmente tímida e comedida, tentando resgatar-se de suas próprias ruínas, algumas das instituições republicanas começam a manifestar um movimento de reação ao descalabro em marcha. O STF promove uma ação de restauração do devido processo legal, decidindo pela suspeição e parcialidade de Sergio Moro; o Senado afinal instaura uma CPI para investigar a tragédia sanitária causada pelo verdadeiro morticínio em que se converteu a pandemia da Covid-19 no Brasil e algumas vozes que haviam apoiado o candidato neofascista em 2018 começam a manifestar seu arrependimento. Entretanto, a aliança de extrema direita permanece com apoios suficientes para se manter no poder; conta com um grupo expressivo de comandantes militares, maioria parlamentar, força militante entre lideranças da classe média e da burguesia e sustentação do grande capital às promessas do risível Guedes.

A direita liberal brasileira vive um dilema na sua relação com o desgoverno do canalha. Trabalhou para elegê-lo, pensando em governar no seu lugar com Guedes e Moro. Descobriu que não era bem assim e agora se encontra prisioneira do monstro que ajudou a criar. Sua única alternativa, embora tenha medo de acioná-la, é o impeachment. Com o genocida fora da cena política, seria possível tentar um grau mínimo de reorganização do governo tanto no combate à pandemia quanto no enfrentamento da crise econômica; nesse caso, claro, sem o neoliberalismo tosco do Guedes. A partir daí, seria factível uma saída para a crise política, buscando um candidato capaz de enfrentar a esquerda na eleição de 2022.

Os democratas americanos conseguiram produzir um caminho para fora da crise, que lá é tão complexa quanto aqui, através da figura de Joe Biden. Por que isso não parece provável no horizonte da direita educada do Brasil? Talvez devamos reconhecer que essa força política é minoritária entre nós. Diferente dos EUA, o compromisso com o estado democrático de direito é muito frágil na classe dominante brasileira, herdeira do autoritarismo nas relações sociais, cinzelado não apenas pela escravidão, mas pelo desprezo e ódio ao povo e um apego a privilégios que são malvistos nos Estados Unidos, onde a igualdade perante a lei tem uma raiz vigorosa.

Mais ainda, mesmo tendo assistido e até interagido com as administrações de Lula e Dilma – e testemunhado sua adesão incondicional às regras da democracia e ao estado de direito, bem como seu compromisso de não afrontar interesses da finança e do grande capital, além de oportunizar um ciclo de crescimento inédito desde os anos 1970 e que impulsionou a acumulação de capital no país -, seguem refratários a essa esquerda moderada. Em sua convicção retrógrada, mesmo o tímido avanço das camadas populares do piso da estrutura social brasileira decorrente do aumento do salário-mínimo, do crescimento do emprego formal, de uma pequena redistribuição de renda e propriedade com as políticas sociais de transferência (Bolsa-Família), da reforma agrária e da habitação (Minha Casa Minha Vida) não são aceitáveis. Qualquer ação que emancipe do desespero da fome e miséria essa camada mais pobre da população e lhe dê condições mínimas de exercício de cidadania é percebida como um avanço sobre seus privilégios.

É marcante a diferença de mentalidade da classe dominante brasileira e de sua consorte, a classe média, em relação às suas congêneres norte-americanas. Naquele país, a classe média se confunde com a própria classe trabalhadora e a burguesia está aberta à mobilidade social e ao ingresso de novos membros. Há um espírito republicano enraizado e que, se sofre os efeitos do racismo, vem enfrentando essa mácula, mesmo que de forma errática e muito lenta, como mostra o julgamento do caso George Floyd.

Nossa sorte é diferente, como já apontavam os grandes intérpretes do Brasil como Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior, Celso Furtado e Florestan Fernandes. Aqui não se fundou um novo Estado, mas se adaptaram as estruturas da administração colonial e da monarquia e sua mácula social, separando privilegiados e despossuídos de direitos. Pior, a isso se somou o racismo, pois os deserdados eram majoritariamente negros e indígenas.

Muito timidamente, e apenas depois da Revolução de 1930, é que alguns poucos direitos de cidadania foram estendidos às classes populares. Um processo tortuoso e inacabado até hoje, alvo de enorme resistência e que teve na Constituição de 1988 um marco. Não é por outra razão que os herdeiros dos escravocratas vêm de há muito colando remendos na Carta Constitucional com vistas a revogar ou impedir o exercício de muitos dos direitos ali estabelecidos. São as chamadas “reformas” sem as quais o Brasil seria “ingovernável”.

Também não é por outra razão que os movimentos no sentido de afirmação daquelas prerrogativas de iniciativa dos governos Lula e Dilma foram tão mal recebidos por esse estamento de privilegiados. O que fez do Brasil um campeão mundial da desigualdade e da negação de direitos foi a ação dessa elite social que construiu, com sua arrogância e crueldade, uma das mais iníquas sociedades do planeta, transformando seu povo em uma massa de sangue e músculos a ser explorada até a exaustão e à morte. Qualquer iniciativa que tente mudar esse estado de coisas recebe seu veto.

Esse reacionarismo radical torna a classe dominante incapaz de formular uma alternativa de saída para a situação calamitosa do país. Em lugar de se desfazer do canalha e suas monstruosidades e abrir espaço para uma alternativa genuinamente liberal, escolhem seguir remando nessa nau da insensatez. Até porque o liberalismo republicano, nascido das revoluções do século XVIII, passa muito longe do que realmente pensam. Assim, a única via de superação da crise nacional fica sendo a proposta pela esquerda, com Lula ou outro que venha representá-la.

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