Lavou o rosto e escovou os dentes maquinalmente. Vestiu as roupas de sempre, já separadas na sonolência da noite anterior. O gosto de hortelã da pasta de dentes não venceu o amargor de café forte na boca.

Entrou no elevador sem falar com o vizinho que já estava lá. Há dois anos se encontram e nunca se falaram. Um estranho familiar. Ambos mantiveram a cabeça abaixada para evitar encontrar os olhos um do outro. Na portaria do prédio, olhou-se no espelho e percebeu que ainda tinha remela no olho.

Dirigiu pelas ruas congestionadas de sempre. Como sempre, cada vez mais congestionadas. São 15 minutos a mais de trânsito a cada ano. Um minuto a mais de descanso a menos a cada ano. O corpo de um motoboy estirado no chão, guarnecido por meia dúzia de curiosos e consternados, acrescentou 30 minutos de trânsito àquele dia.

Chegou atrasado no trabalho como se chegasse na hora. Entrou do mesmo jeito, balbuciou gemidos que valiam como um cumprimento para as pessoas de sempre. Sentou-se diante de papéis e um computador lento.

Não sabia quem colocava os papéis lá. Sempre que chegava, lá estavam, postos na bandeja à esquerda. Feitas as tarefas, colocava os papéis acrescidos de rabiscos e papéis novos na bandeja de acrílico barato à direita de sua mesa.

À hora do almoço, saiu sozinho e calado. Comeu um sanduíche barato no lugar de sempre. O dono da lanchonete, pela primeira vez em anos, puxou conversa. Era candidato a vereador e pediu voto. Fez sinal de que votaria e comeu rápido para livrar-se do sujeito e da lanchonete. Passou o resto da hora do almoço andando pelas ruas em volta.

Na esquina, uma moça gritou. Sujeito rápido e ágil saiu correndo com a bolsa dela na mão. Metade das pessoas ficou paralisada, com cara de espanto. Outra metade pôs-se a correr atrás, com cara de raiva. Duas esquinas depois, o ladrão estava amarrado e linchado. Esperando a polícia, as pessoas comentavam que não viram nada.

Sujeito sorridente, acompanhado de outro, grandão e carrancudo, pediu-lhe licença e voto. Deu-lhe um santinho em que parecia mais jovem e com dentes artificialmente brancos. Pediu voto para acabar com aquela bandidagem. Balançou a cabeça e saiu rápido. Estava atrasado novamente.

Terminou o trabalho antes do fim do horário, mas precisou ficar por lá fingindo que havia o que fazer até o fim do horário. Seguiu para casa no engarrafamento noturno, de pessoas mais irritadas que no engarrafamento diurno.

No rádio, propaganda política. Pastor Fulano traria Jesus para a Câmara. Capitão Ciclano gritava “chega de impunidade!”. Voz quase infantil prometia ser a voz do empreendedorismo. Voz feminina, com número e sem nome, representaria as mulheres na política.

Entrou em casa com o telefone já tocando. Voz gravada pedia voto. Desligou sem querer ouvir o resto. Tentou tomar banho, mas não tinha água. Tentou reclamar com a companhia, recentemente privatizada com a promessa dos eleitos na eleição passada de que tudo seria mais barato e eficiente. A conta aumentou e não tinha água. Reclamou com uma máquina, que prometeu mandar um e-mail.

Ligou a TV para fazer barulho enquanto comia coisas enlatadas e comidas instantâneas. Candidatos a prefeitos debatiam sobre o caráter do oponente. Denunciavam a incapacidade e baixeza moral do oponente. Concluiu que todos tinham razão. Não ouviu uma ideia sequer.

Pensou na falta de água, na falta de alguém com quem conversar, na falta de ideias, na falta de perspectiva, na falta de tranquilidade, na falta de tempo, na falta de gentileza…

Sonolento, separou as roupas do dia seguinte. Para amanhã não perder tempo nesta vida perdida.

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Ilustração: Mihai Cauli 
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