O espelho é um objeto sem vida, não sente, não fala, logo é um paradoxo escrever que o espelho tem vida própria. Interessante que desde a Antiguidade se adverte sobre os riscos de se ver no espelho numa encruzilhada. O espelho é sedutor e assusta como escreveu o Padre Antonio Vieira em seu “Sermão do demônio mudo”: “O espelho é um demônio mudo, da pior casta que os outros demônios mudos-pois ele adula”. Todos gostam de ser adulados, e o espelho é surpreendente, como escreveu Érico Veríssimo no seu livro autobiográfico “Solo de clarineta”. Antes dele tem contos marcantes de Machado de Assis, Guimarães Rosa sobre o fascínio do espelho.

Poucos contos sobre o espelho me impactaram mais, e por mais tempo, que o conto “Horla” de Guy de Maupassant. É a história de um homem que vive sozinho com seu mordomo e governanta numa residência confortável. Aos poucos, porém, começa a perceber pequenas alterações em seu cotidiano. Um dia vê seu copo de água que estava cheio só pela metade, se pergunta se alguém havia tomado. Cresce na sua imaginação a presença de alguém no seu quarto, na sua casa. Maupassant cria, vagarosamente, um clima de medo, angústia até chegar ao pavor. Pensa se o ser invisível era um vampiro, um fantasma, que sugava sua energia e um dia ao se ver no espelho, fica chocado, pois não se vê. Entre ele e o espelho está o Horla que tinha devorado seu reflexo. O conto segue, mas imaginem o pânico que o homem sentiu ou qualquer um sentiria. (Ouça em Conto um Conto)

Jorge Luís Borges teve no espelho uma de suas metáforas preferidas sobre o ser humano, e Fernando Pessoa criou vários nomes próprios. Há uma crônica emocionante de José Saramago: “O espelho de Fernando Pessoa”. O poeta português ao passar diante de um espelho percebeu outra pessoa, deu um passo atrás, e viu um homem a olhar de dentro do espelho, mas não era ele. E escutou: “Chamo-me Alberto Caieiro”. Pessoa ficou paralisado, foi se refazendo, quando surge outro no espelho e diz: “Chamo-me Ricardo Reis”. O poeta não entendia o que estava se passando quando vê um homem forte a dizer do espelho: “ “Sou Álvaro Campos”. O poeta que sabia perceber a eterna novidade do mundo se cansou e foi dormir. Na madrugada acordou e foi ao espelho ver qual dos três poderia ter ficado lá e se surpreendeu: “ Chamo-me Bernardo Soares”.

Fernando Pessoa já estava para morrer quando pediu seus óculos, e nunca ninguém entendeu por que fizera esse pedido. Talvez desejasse se ver no espelho para saber com quem de seus “eus” poderia ver. Para Saramago o poeta nunca chegou a ter certeza exata de quem era. Já a gente, graças aos artistas, analistas, parcerias, aprende quem se é, iludida que um dia tudo será conhecido.

Agora, se espelhos espaciais dessem imagens do gigante adormecido em berço esplêndido como ele seria? Muitos livros novos sobre o Brasil vem revelando o que sempre foi ocultado. Com espanto se conhecem novos retratos, em ensaios, filmes, que permitem vislumbrar o que está debaixo do tapete. O livro “O Soldado Antropofágico: Escravidão e não pensamento no Brasil”, do psicanalista Tales Ab’Saber é um surpreendente espelho do nosso país. (Publicado no Facebook em 08/07/2022)

***
Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.

Ilustração: Mihai Cauli
Clique aqui para ler artigos do autor.