Lula, o mercado e o teto de gastos

Estou acompanhando artigos os mais variados, esgrimindo tecnicidades tanto do ponto de vista dos que defendem a proposta do novo governo em relação à PEC do orçamento público, quanto daqueles que até bem pouco tempo pretensamente defendiam a ascensão ao poder do Lula, mas rapidamente, mesmo que nunca enganados pelo candidato de suas pretensões, “viraram” e passaram a defender em textos “neutros”, as suas verdadeiras convicções, a defesa incondicional do mercado, leia-se do sistema financeiro.

Os textos e artigos que defendem as proposições do novo governo eleito são muito valiosos e externam posições de contestação ao “grupo do mercado” até do ponto de vista teórico, portanto muito importantes na discussão das visões e caminhos pelos quais a economia brasileira deve passar a trilhar.

Mas gostaria de reforçar alguns argumentos no que considero também muito importante.

Primeiro é preciso ressaltar que o teto já havia caído em mais de 700 bilhões de reais e embora justificado pela pandemia, os dados de sua utilização demonstram que a mobilização da maior parte destes recursos não ocorreram durante o seu pico. Então há que se investigar este uso, e mais ainda, há que se perguntar por que essas “vozes do mercado” não se levantaram nesta direção para reclamar deste fato, mesmo quando os propósitos de utilização destes recursos não eram nem conhecidos, nem estavam tão explícitos…. ou será que estavam?

Segundo, mesmo com o aparecimento de todos os sinais e sintomas destas “doenças da economia brasileira” – crescimento da inflação, crescimento das taxas de juros, crescimento dos indicadores de pobreza, da fome e da miséria – é de se perguntar por que essas mesmas “vozes do mercado”, quando se manifestavam, o faziam de forma tão tímida, na maior parte das vezes apontando suas preocupações com a busca do equilíbrio, mesmo que às custas da queima dos ativos do Estado brasileiro.

Terceiro, temos que chamar a atenção para o fato de que na proposta atual, diferentemente de outros momentos, os motivos e pretensões da chamada “quebra do teto de gastos” estão explícitos, transparentes, discutidos por toda a sociedade e por seus representantes, ou seja, o propósito está sem “sigilos” ou sem temas “secretos”. Além disso, essa proposição leva embutida uma clara posição de combate à pobreza e à miséria absoluta, que por si só se justificaria, mas também uma concepção de que o consumo destas famílias movimentará a economia e poderá gerar uma ação, que associada a outras, gerará crescimento das atividades econômicas e, portanto, incrementará o próprio orçamento público.

Por fim, interpretando o mestre Beluzzo, que considero um dos maiores economistas políticos vivos no Brasil, o orçamento é uma peça de planejamento que sempre tem que ser revisto e só podemos dizer que existirá déficit ou não quando ele se realizar. Ele pode e deve ser planejado concomitantemente com a determinação de uma política econômica de crescimento, podendo mais à frente abrir mais espaços para sua execução, não precisando gerar constrangimentos ou contingenciamentos. Beluzzo ainda exemplifica que nos dois governos Lula houve sempre superávit primário e quando isto ocorreu, nós, economistas de esquerda, reclamamos da utilização excessiva para pagar os juros do sistema financeiro.

Também é preciso explicitar, e de uma forma até “mais radical”, que estes que pretensamente defenderam este projeto e agora já reassumem suas verdadeiras vestes de “defesa do mercado”, só o fizeram porque estavam numa espécie de “sinuca de bico” onde não podiam “jogar suas fichas” num projeto em que as forças produtivas tinham menos importância do que o crescimento dos negócios da familícia e das suas benesses, arriscando até a credibilidade do país e, portanto, em última instância, também de suas empresas.

Então não tinham escolha, embora procurassem ainda até o final criar uma terceira via. Nas palavras de um amigo, “não podiam mais embarcar no naufrágio do maremoto fascista”. Subiram a rampa da Arca de Noé.

Com o perdão das tradições romanas, estas “vestais do mercado”, tão logo puderam, mesmo que travestidas pela paternidade do real, usando argumentos pretensamente defensores do povo – a volta da inflação e o prejuízo que isto pode provocar ao trabalhador – tentam encobrir quem sempre foram os maiores beneficiados pela inflação e pelo crescimento da dívida pública, afinal sempre quiseram e colocaram a “mão não mais tão invisível do mercado” no orçamento público, dirigindo de uma certa forma os principais instrumentos de política econômica do país.

Além disso, há que se colocar também o outro argumento do mestre Beluzzo – de que os gestores da política econômica do futuro governo, a começar pelo presidente, não têm histórico de calote ou não pagamento da dívida pública. Ao contrário, o mercado sempre esteve muito bem, recebendo polpudas retribuições do Estado brasileiro.

Na verdade, sob falsos argumentos e inclusive diagnósticos errôneos, os representantes do mercado financeiro querem continuar mandando e influenciando estas tomadas de decisão. Querem que o governo Lula vire refém do rentismo!

Ou, como definiria esse mesmo amigo, “esses que estão envergando a ‘túnica de vestais’ labutam, com suas manifestações ‘pseudo técnicas’ e camufladas pela aura de que ‘responsabilidade fiscal & responsabilidade social são faces de uma mesma moeda’, em prol de promoverem a ‘captura da política econômica do novo governo’ em refinada articulação com a pesada turma da fidúcia inescrupulosa!”

Hoje em dia, diante de uma realidade nua e crua visível nas ruas e calçadas das cidades, sofrem de uma “leve vergonha”, e tentam articular suas posições usando inclusive posições que ocuparam no passado (pais do Real, etc, etc), como se estivessem preocupados com os efeitos da inflação e da rápida deterioração econômica sobre os trabalhadores e sobre o povo pobre, mas lhes negam a possibilidade de enfrentar um pouco melhor os efeitos de suas nefastas políticas.

Foto: Hebert Teodoro Silva

Puro cinismo!

Ora, como podem dizer que o governo brasileiro não é um bom pagador? Como podem dizer que este comportamento de subida dos juros é ocasionado por desconfiança e por aversão ao calote? Quando foi que estes credores do governo perderam alguma coisa?

E, se fosse desta forma, por que estas “vestais do mercado”, depois que deixaram suas funções públicas, iriam para os “lugares” que foram? Por que foram ocupar cargos de direção (quando não passaram a ser os proprietários) de empresas do mercado financeiro?

Porque gostam de perder ou porque têm aversão ao risco?

***
Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone

Leia também “Responsabilidade fiscal e federativa na enfermaria“, de José Roberto Afonso e Geraldo Biasoto.