O fascismo cruza o Atlântico

I

Quando todos se preparavam para uma estrondosa vitória do partido de Marine Le Pen na França, uma surpreendente reação das forças de esquerda unidas na NFP (Nova Frente Popular) jogou os ultradireitistas do Rassemblement National (RN) para a terceira posição, logo atrás dos aparentados do Essemble do presidente Macron – não deixa de ser curiosa a proximidade entre as palavras que designam ambos os agrupamentos[1]. Passada a merecida celebração, o mais aconselhável seria botar os pés no chão para verificar que, embora importante, esta é uma vitória que está longe de se consolidar. Nada indica que o crescimento da ultradireita na Europa e na França foi brecado. Ao contrário, mal há tempo para tomar fôlego. Agora mesmo, na Inglaterra, nem bem iniciado um novo governo trabalhista, após milênios de governos ultraliberais, bandos de silvícolas citadinos bem alimentados e educados estão incendiando as ruas do país em ataques escancaradamente racistas e xenófobos que não deixam muito para trás as turbas dos camisas pardas que incendiavam as lojas dos judeus na Alemanha dos anos 1930. Não bastasse isso, há um caminhão de discrepâncias entre os do partido fundado por Mélenchon em 2016 e as agremiações da esquerda tradicional que desde algum tempo vinham num franco processo de esvaziamento, entre elas o ex-todo-poderoso Partido Socialista Francês, que ao final do governo François Hollande esteve literalmente às bordas da extinção – acaso ou não, o ex-presidente socialista é atualmente um dos principais obstáculos para a composição de uma nova maioria com Mélenchon e os seus.

II

Cansados das desgraças do Velho Mundo e exaustos, exauridos e derrotados pela impunidade do Estado de Israel e sua interminável chacina dos palestinos de Gaza, o início do segundo semestre se abre com as expectativas voltadas para a eleição presidencial nos Estados Unidos. Fosse quem fossem os rivais na disputa, o foco já estaria voltado para quem será o futuro ocupante da Casa Branca. Mas não há dúvida de que a presença, de novo, de Donald Trump com chances reais de vitória faz crescer a tensão e, para boa parte dos humanos, o medo.

III

Se, como ensinam os historiadores, o fascismo nasceu na Europa e aqui se consolidou até produzir uma das maiores catástrofes da história da humanidade, e não há por que duvidar dos historiadores nesse item, quem primeiro teria alertado para a possibilidade de um regime de características pelo menos muito parecidas com as do fascismo italiano foi um escritor lá do país do sr. Trump e da sra. Harris mais conhecido por romances ditos de aventuras e chamado Jack London (O Apelo Selvagem, O Lobo do Mar, e o autobiográfico e extraordinário Martin Éden). London publicou O Tacão de Ferro (The Iron Heel), em 1908, mais de uma década, portanto, antes de Mussolini assumir o poder na Itália – no Brasil foi editado pela Boitempo em 2003 (desconheço se existem outras edições).

IV

As peripécias de última hora na eleição americana, com a substituição do candidato Democrata e o foco centrado no acirramento da disputa tendem a jogar para o segundo plano um fenômeno que talvez seja o mais relevante de todos os que vêm ocorrendo na política do Império, pelo menos desde o final do século passado. A consolidação e o fortalecimento da figura de Donald Trump são a comprovação de que um fascismo de características renovadas encontrou suas raízes mais profundas e definitivamente ganhou corpo no país do mega empresário. O resultado em si da eleição de novembro pode não ser o fato mais importante – ainda que de nenhuma maneira seja irrelevante para os trabalhadores, os direitos dos negros, dos migrantes, das mulheres, das minorias etc, quem saia vitorioso em novembro, se Trump ou a Democrata Kamala Harris. Mesmo que o Republicano seja mais uma vez derrotado nas urnas, a sombra do que representa é daqui para frente uma ameaça permanente e de grande porte.

V

O problema da imigração, com o rechaço cada vez mais intransigente ao imigrante ou simplesmente ao estrangeiro (o outro), parece atuar como catalisador ou ponto de confluência de energias, rancores e frustrações, capazes de turbinar os discursos da ultradireita. É aqui onde se encontram leste e oeste, norte e sul, a letrada Europa e o bravio Novo Mundo, os herdeiros do nacional-socialismo com, por exemplo, o nacionalismo-cristão dos evangélicos estadunidenses que se mobilizaram mais que nunca para apoiar massivamente Donald Trump na disputa contra Hillary Clinton – 81% dessa camada da população votou em Trump, 16% em Hillary. Nenhum candidato Republicano (ou Democrata) havia jamais conseguido esse nível de apoio entre essa gente. Trump não ignora a importância desses eleitores e responde às suas demandas em gestos e agrados. Abriu o discurso de encerramento da Convenção Republicana no final de julho, no qual oficializou sua candidatura, garantindo, como um profeta: “Tenho Deus do meu lado!”. Nesse mesmo discurso, um Trump disposto a magnetizar a nação em torno de sua figura se dirigiu à fiel audiência dizendo: “A cada cidadão, seja jovem ou idoso, homem ou mulher, republicano ou independente, negro ou branco, asiático ou hispânico, eu estendo uma mão de lealdade e amizade.” Mas como anotou um atento repórter espanhol, a quem Trump não estendeu a mão foi aos imigrantes. Ao contrário, fez questão de insistir num dos grandes eixos de sua pregação: fechar a fronteira com o México para impedir que os migrantes “envenenem o sangue deste país” (uma expressão que usou no início de sua campanha à nominação pelos Republicanos). Talvez os eleitores do milionário não se recordem, mas na Alemanha dos anos 30 do século passado também se acusaram os judeus de envenenarem o sangue germânico. Ou talvez, sim, saibam perfeitamente do que se está tratando.

VI

(Evidentemente não se deve cair na tentação de colocar no mesmo saco o Reich de Mil Anos e o MAGA[Make America Great Again]– seria de todo inapropriado. Há diferenças significativas entre um e outro sujeito político. Um é histriônico, o outro não, e este é apenas um exemplo. Um, conta com o apoio direto de Deus, o outro era a própria encarnação de uma divindade pagã, ele mesmo.  E por aí vai. Pode parecer pouco, mas não é.)

VII

De uns tantos tempos para cá, o fascismo voltou à boca do povo, ou dos que se expressam em seu nome. Muitas vezes com certa liberalidade. E tudo quanto é regime ou movimento de cunho autoritário é automaticamente batizado como fascista, pouco importa as características que apresenta. Não é preciso cair no cientificismo para escapar desse vale tudo que no fim das contas não esclarece nada.  No Dicionário de Política (N. Bobbio, N. Mateucci e G. Paquino, Editora UNB, 2010) o verbete fascismo ocupa 10 páginas (da pág. 466 a 475). Se alguém quer se aprofundar, talvez valha a pena. Mas daí, o melhor mesmo será olhar para mundo à nossa volta e simultaneamente para a história do século XX. O Houaiss é bem mais modesto. Depois de uma mínima contextualização histórica (“movimento político ou regime como estabelecido por Mussolini na Itália, em 1922”), não vai além de uma definição um tanto vaga (e imprecisa) onde diz que faz “prevalecer os conceitos de nação e raça sobre os valores individuais e que é representado por um governo autocrático centralizado na figura de um ditador”. Quando você pergunta ao ChatGPT o que se entende por protofascismo encontra uma redação melhorada do que está no Houaiss:

  • nacionalismo extremo
  • glorificação da nação associada à raça
  • promoção da ideia de superioridade de um grupo (ou raça) sobre outro(s)
  • “unificação e purificação da nação, frequentemente mediante a exclusão ou a eliminação de elementos considerados ‘não nacionais’ ou ‘indesejáveis’”

Numa palavra, um resumo quase ipsis literis do programa presidencial de Donald Trump.

VIII

Mas não é apenas o programa. Quem são os que formam sua tropa de choque e seu núcleo duro na sociedade americana? A tropa de choque, da mesma forma como foi no fascismo italiano e na Alemanha hitlerista, aparentemente está formada por aqueles que podem se dar ao luxo de se lançarem a qualquer aventura, porque de uma forma ou outra se acostumaram a viver como lúmpens, mais ou menos à margem dos setores estabelecidos na zona de conforto da sociedade. Muitas vezes, pequenos personagens que vivem de expedientes e das migalhas do poder ou que se alimentam das migalhas distribuídas por personagens que vivem nas sombras do poder. Um dos exemplos mais notáveis é um sujeito chamado Roger Stone, tão oportunista que não teve o menor pudor de interromper a rodagem de um documentário sobre si mesmo para tentar extorquir do diretor uma participação nos eventuais lucros da produção (ver Tempestade em Washington, Christoffer Guldbrandsen, 2023). Foi também o criador do movimento Stop the Steal, a tentativa de bloquear a contagem de votos na vitória de Biden contra Trump, em 2020. Outra marca do fascismo nos Estados Unidos, e essa é uma diferença marcante com relação ao parente europeu, é a presença de uma significativa base de apoio religiosa. Por mais que os fascismos europeus tenham tido e possam ter ainda boas relações com as instituições religiosas, sobretudo na Espanha, a pregação religiosa e o fundamentalismo cristão nunca foram parte essencial do livrinho de propaganda fascista. Não creio que se possam encontrar discursos onde Mussolini, e muito menos algum prócere do nazismo, esteja apregoando a presença de Deus a seu lado.

Notas:
(Uma boa amostra dessa base religiosa do trumpismo e seus antecedentes pode ser vista no documentário Bad Faith – Christian Nationalism’s Undoly War on Democracy)

  1. Rassemblement deriva do verbo rassembler, que significa reunir ou juntar, a palavra ensemble deriva do latim insimul, que significa ao mesmo tempo ou juntos.
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Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
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