O ótimo documentário Sinfonia de um Homem Comum, de José Joffily, narra a história da destituição do embaixador José Maurício Bustani da presidência da OPAQ – Organização para Proibição de Armas Químicas, órgão da ONU –, orquestrada porque o diplomata brasileiro não se vergou à pressão dos americanos para confirmar a falsa narrativa de armas químicas no Iraque, o que justificaria a invasão daquele país.

Bustani resistiu, deu amparo ao corpo técnico da OPAQ, mas não teve jeito. Com a omissão do Itamaraty à época, no governo FHC, os americanos conseguiram a destituição, tendo à frente o troglodita de gabinete, John Bolton.

A ONU sempre teve limitações, nunca chegamos perto de uma governança global, o sistema em si já é feito para ter carência de legitimidade, pela falta de mínima proporcionalidade. Na assembleia geral, por exemplo, o voto de Tonga ou Luxemburgo tem o mesmo peso de China, EUA ou Indonésia.

Isso é compensado pelo fato de as nações militarmente poderosas e vencedoras da Segunda Guerra Mundial serem membros permanentes do Conselho de Segurança e terem poder de veto. O poder de veto é uma construção do realismo político, para evitar que a ONU tivesse o mesmo destino da Liga das Nações, criada após o fim da Primeira Guerra e que morreu de inanição e irrelevância ao longo da década de 30 do século XX.

Talvez seja hoje a única coisa em que EUA e Rússia concordem em política externa. Putin, em discursos antigos e recentes, insiste na necessidade do poder de veto, sem o que o sistema mundial colapsaria, segundo a visão russa, e os argumentos são difíceis de refutar.

Mas a ONU, desde a sua criação, ao menos era o fórum onde as grandes potências podiam conversar e onde brechas se abrem para demandas politicamente relevantes, como o fim do colonialismo na África, a condenação da ocupação israelense, do apartheid na África do Sul, o aquecimento climático, entre outros. Isso não impediu golpes e guerras civis na América Latina e na África, a guerra da Coreia, do Vietnã, a invasão da Hungria e da Tchecoslováquia, mas é difícil quantificar se e quanto mais ocorreria sem o sistema ONU.

Então, era limitado, mas era um sistema mundial, cujo colapso tem como marco inicial, penso (isso é sempre problemático em história), a destituição de Bustani. Alguns podem estabelecer o marco inicial da decadência no fim do bloco soviético, o que tornou o EUA o único poder mundial, sem contraponto, o que também seria defensável.

Todavia, o caso Bustani foi emblemático pelo atropelamento das regras (não mera conformação delas aos desejos do único poder real então estabelecido, como ocorreu ao longo da década de 90) e porque o momento geopolítico já começava a mudar. Na destituição de Bustani e na posterior invasão do Iraque (2002/2003), a Rússia já não era a de Yeltsin, estava no poder um grupo político nacionalista (Putin assumiu em 1999) e a China começava a aparecer no horizonte como uma futura potência econômica.

Então, mesmo com toda a truculência e mentiras (e ainda dizem que Steve Bannon inventou as fake news), a ONU não autorizou a invasão ao Iraque. Ainda assim, os americanos ignoraram e foram em frente.

Capítulo importante, que não pode ser esquecido, foi o assassinato do embaixador Sérgio Vieira de Mello, certamente com a conivência dos americanos. Quando ficou claro que não havia armas químicas no Iraque, os americanos se viram pressionados a aceitar a presença da ONU. Fingiram aceitar, mas, em uma “terrível falha de segurança”, o embaixador Vieira de Mello foi morto em um conveniente atentado terrorista. Apesar de Bustani e Vieira de Mello estarem a serviço do sistema ONU e não do Itamaraty, ambas as situações foram agressões contra o Brasil e sua busca, sempre minada (externa e internamente), de independência geopolítica. Fecha parênteses.

Voltando à legitimidade da ONU, desde esse momento, quando a nação mais poderosa do mundo agiu de forma unilateral, a entidade se tornou basicamente decorativa.

De lá para cá, a balança de poder no mundo mudou bastante. A Rússia reorganizou as forças armadas e mesmo com pouca diversificação industrial se tornou crucial na oferta mundial de energia. Nesse meio tempo, também de forma unilateral, impediu pela força a entrada da Geórgia na OTAN. Enquanto isso, a China se tornava a maior potência industrial.

Os americanos, por outro lado, passaram a enfrentar a maior divisão interna desde a Guerra Civil, fazendo a importante querela interna entre isolacionistas e globalistas (na Primeira e na Segunda Guerra Mundiais) parecer algo irrelevante. E é uma divisão por algo um tanto abstrato, um sentimento de mal-estar capitaneado pela extrema direita e que por isso nunca acerta no diagnóstico: a decadência econômica de vasta parcela da população, a concentração de renda cada vez maior e a desconstrução paulatina do estado do bem-estar social, a partir dos governos Reagan. A Europa passa pelo mesmo problema, com os mesmos diagnósticos equivocados.

Os americanos não têm perspectiva de conseguir novamente espraiar sua influência econômica concreta pelo mundo. Biden lançou uma política de investimentos internos e se forem exitosos conseguirão interromper ou até reverter em parte a desindustrialização, talvez voltem a gerar internamente empregos de qualidade, mas o fato é que as grandes multinacionais industriais americanas e europeias estão com menos espaço na cadeia produtiva mundial (isso que chamo de influência econômica concreta).

Por outro lado, a China foi, primeiro, o lugar de produção (“montadora”, “maquiladora”) das grandes multinacionais. Com o aumento gradual da renda interna, foi se tornando grande consumidora de produtos primários, especialmente dos países periféricos, e foi construindo indústrias pesada e de ponta próprias. Hoje, concorre em praticamente todas as áreas com as grandes empresas do “Ocidente”.

O mundo financeiro ainda é comandado pelos americanos e europeus, o dólar ainda é a moeda internacional, e isso é muito relevante, mas o fato é que a China bagunçou a geopolítica mundial de baixo para cima, não pelas armas, nem pelo comércio imposto pelas armas, mas pelo comércio, apenas (que já tem em si um enorme elemento coercitivo).

Nesse cenário, os americanos continuaram a agir como no mundo unipolar, que não existe mais, e arrastando a Europa. Um mundo multipolar, penso, é apenas um com mais centros de poder e não um onde as partes dialogam e dividem o poder, isso é uma idealização romântica. Um mundo multipolar é uma imposição da economia política e, consequentemente, da geopolítica.

Nesse novo mundo, os americanos pretenderam desestabilizar ou fragmentar a Rússia e arquitetaram o golpe de 2014 na Ucrânia, tirando o presidente eleito que era mais próximo de Moscou. A Rússia, em reação, tomou a Crimeia. Desde então, entre acordos não cumpridos e ameaças mútuas, o “Ocidente” quis forçar a entrada da Ucrânia na OTAN e os russos invadiram a Ucrânia, em fevereiro de 2022.

Talvez não esperassem essa reação da Rússia. Ou, se estava dentre as possibilidades previstas pelos analistas americanos, talvez acreditassem que as pesadas sanções (as maiores até hoje aplicadas contra qualquer país) seriam a ruína da Rússia. Em qualquer situação, ganhariam, portanto.

Mas se esqueceram da China e de outros países, relevantes ou não, que estreitaram relações econômicas com a China e que por isso não eram mais tão dependentes do “Ocidente”, além daqueles que têm relações históricas com a própria Rússia, como a Índia, a provável outra superpotência em uma ou poucas décadas.

Então, com as pesadas sanções, a Rússia se voltou principalmente para a China e compensou, ao menos em parte (não sei dizer se as sanções podem ter efeito no médio/longo prazo), as perdas com o mercado europeu. Esperavam uma recessão violenta em 2022, foi de pouco mais de 2%, em 2023 deve haver algum crescimento da Rússia e provavelmente haverá também em 2024.

Isso acelerou o movimento que já vinha ocorrendo de isolamento do “Ocidente”. A China e a Rússia abriram um outro bloco e o resto do mundo (o “sul global”, a Índia, mais as monarquias petroleiras do Oriente Médio) já não se alinha automaticamente ao “Ocidente”, pelo contrário. EUA e UE nada têm a oferecer de concreto ao resto do mundo, estão às voltas com seus problemas econômicos internos, ao contrário da China, que compra os produtos, constrói mundo afora estradas, usinas, sem nenhuma exigência de alinhamento. Isso libera a todos para se posicionarem como quiserem e há, ainda, muita mágoa diplomática guardada contra os imperialismos dos americanos e europeus.

Nesse cenário, explodiu o massacre de Israel contra a Palestina ocupada.

Amarrados pelo histórico apoio incondicional a Israel, os americanos e europeus sofrem enorme desgaste externo e, também, interno. Dessa vez, o inimigo do “Ocidente” não é mais a Rússia e seu poderoso exército invasor, mas o Hamas, cujo poderio militar é infinitamente inferior ao de Israel.

Logo fica claro que a guerra de Israel é contra o povo palestino, contra mulheres e crianças, tudo filmado e exposto quase em tempo real. EUA e europeus se desgastam com vetos ou abstenções ao cessar-fogo humanitário, enquanto as autoridades israelenses os arrastam para o lodo com declarações racistas nauseantes, imagens aviltantes e objetivos genocidas. Qualquer pretensão de superioridade moral que ainda restasse ao “Ocidente” escorreu definitivamente pelo ralo.

E a ONU, impotente, não por culpa dela, mas porque sempre foi dependente da legitimidade que os poderes estatais lhe conferiam, em especial os que comandam a geopolítica.

Mas as votações na assembleia geral têm sido massacrantes contra Israel e seus aliados e recentemente a Corte Internacional de Justiça aceitou por ampla maioria a ação proposta pela África do Sul, por genocídio, contra Israel, cujo mérito ainda será analisado.

Foi uma derrota para americanos e europeus, não só para Israel, cujos dirigentes nem parecem se importar. A decisão conta, inclusive, com o apoio de boa parte da opinião pública europeia e mesmo nos EUA.

A reação desse alinhamento “ocidental” foi imediata, mas não foi aquela que se esperava, de recuo mesmo que paulatino da defesa incondicional de Israel. No dia seguinte à decisão da Corte Internacional, Israel forjou uma denúncia contra funcionários da ONU, da Agência de Assistência aos Refugiados, e EUA e aliados, num claro jogo combinado, imediatamente cessaram as contribuições financeiras à entidade. Dobraram a aposta em defesa das ações de Israel, contra o resto do mundo.

Os cenários dos conflitos atuais e a maior independência dos atores estatais indicam que os países do “Ocidente” podem continuar a sofrer derrotas na ONU. Acontece que a legitimação, por uma (falsa) superioridade moral, sempre foi um fator importante para americanos e aliados. Perder isso não é uma opção, acredito.

Mas Israel apenas precipitou o que já era uma tendência, porque o “Ocidente” não recua de suas políticas historicamente imperialistas (como vimos na revolta/golpe no Niger contra a França), não negocia na questão imigratória, não abandona o intervencionismo grosseiro.

Como não vejo no horizonte uma mudança substancial nessas políticas (ainda que se consiga na marra de Israel um cessar-fogo em Gaza), penso que o “Ocidente” não aceitará se submeter a seguidas derrotas em votações. Serem obrigados a recorrer constantemente ao poder de veto no Conselho de Segurança não é sustentável por muito tempo, ainda mais com os conturbados ambientes políticos internos. Mesmo com uma imprensa mainstream muito camarada, quase uníssona em política externa, há nesses países um forte jornalismo alternativo e uma parcela da opinião pública bastante crítica.

Então, acredito que se a situação seguir o curso atual, maior será o esvaziamento da ONU, provocado especialmente pelo “Ocidente” (como lá atrás outros atores esvaziaram a Liga das Nações), e a separação do mundo em blocos será a nova realidade, sem uma arena comum com espaço para a diplomacia, fazendo ruir o sistema multilateral erguido em 1945.

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Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
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