Por que o pagamento dos precatórios é uma bomba para o governo Lula

O fiscalismo como disfarce para desviar dinheiro do orçamento público para o topo da pirâmide

O governo Bolsonaro foi um saque razoavelmente coordenado ao Estado visando destituí-lo de qualquer sentido e fins públicos. Ataques de facções piratas em diversas áreas, à saúde, ao meio ambiente, à cultura, à segurança pública, à educação… Não estou aqui ignorando a conhecida e correta crítica à esquerda de que todo Estado burguês é capturado pelos interesses do capital, estou falando de algo bem pior, de puro e simples gangsterismo.

Houve o gangsterismo mais visível, grosseiro esteticamente, como no meio ambiente (desmonte de órgãos de planejamento e controle, contrabando de madeira, garimpo, genocídio de povos indígenas), na segurança pública (PF e PRF usadas para fins privados, inclusive fraudar a eleição), na saúde (quadrilha da vacina da Covid), mas houve também algo mais refinado, que aparenta tecnicalidade, se esconde no discurso de defesa do “contribuinte” ou no fiscalismo prepotente, tem cobertura midiática favorável ou inexistência de juízos críticos quanto ao seu real caráter de, também, grosseiro gangsterismo, de pura e simples apropriação direta de fundos públicos.

Uma delas já foi desarmada pelo ministro Fernando Haddad, pela MP 1160/2023, que alterou em boa hora a Lei nº 13.988/2020, que estabelecia que o empate numa votação no CARF beneficiava o contribuinte, sendo que esse contribuinte nunca é um pequeno contribuinte, sempre é bom lembrar. Mais importante, a composição no CARF é paritária, ou seja, o empate, em tese, é a regra.

Mas há outra forma descarada de apropriação de fundos públicos que não é muito comentada: a Emenda Constitucional nº 114/2021 (EC 114), na parte que estabeleceu novo regime de pagamentos de precatórios.

O ex-ministro Paulo Guedes foi um dos responsáveis por criar o caos financeiro no País e, então, na exposição de motivos da Emenda Constitucional, como se não tivesse nada com isso, apresentou a “solução”. E a solução foi robustecer o mercado da agiotagem legal.

É necessário fazer um histórico não-técnico do pagamento dos precatórios, enfocando em especial os precatórios devidos pela União Federal e suas autarquias.

Precatórios são o modo como entes públicos pagam suas dívidas reconhecidas em ações judiciais. Como não se pode penhorar bens públicos para pagar dívidas judiciais e porque não teria sentido constitucional o próprio Estado se negar a cumprir condenação judicial (decidida, portanto, pelo mesmo multifacetado Estado), estabeleceu-se que as dívidas judiciais do Estado são pagas por créditos aos seus detentores com previsão orçamentária de pagamento, os precatórios.

Até pouco mais de 20 anos atrás, na esfera federal (nos demais entes era ainda pior), havia enorme atraso no pagamento dos precatórios judiciais. A pessoa (natural ou jurídica) tinha um crédito, mas não sabia quando receberia. Em uma palestra em meados dos anos 90 ouvi de um juiz federal que ele se sentia um mero “declarador inútil de direitos”, já que naquele momento não se sabia quando o direito em si seria realizado, com o pagamento dos precatórios.

Isso foi resolvido, na esfera federal (no Estado do Rio de Janeiro e em alguns outros ainda reina a incerteza), quando, resumindo, parcelaram os débitos antigos e passaram a pagar “à vista” os débitos novos. Desde pelo menos meados da primeira década do século XXI essa situação foi equacionada, todo precatório emitido até o último dia do mês de junho de um ano (para dar tempo de ser incluído na proposta orçamentária) era pago ao longo do ano seguinte, salvo raras exceções. Foi uma vitória da democracia e da institucionalidade.

Mas estamos no Brasil e por aqui nenhum avanço é definitivo e o retrocesso é até previsível. Guedes e Bolsonaro produziram o caos e “apresentaram a solução”, a EC 114. Voltaram a parcelar boa parte dos precatórios judiciais e, de quebra, criaram intencionalmente um enorme mercado para a agiotagem institucionalizada. A apropriação privada pura e simples de fundos públicos em cima de créditos de pessoas (inclusive empresas) muitas vezes endividadas.

A compra por terceiros de créditos de precatórios é permitida, isso não foi inventado por Bolsonaro e Guedes, nem acho que deva ser proibido, longe disso. Se um cidadão ou uma empresa tem um patrimônio (um crédito é um patrimônio) deve poder negociá-lo, sem dúvida. A questão é quando você cria inúmeros empecilhos para o lado do credor e facilita para o lado de quem quer comprar o crédito. E Bolsonaro e Guedes produziram isso com requintes, na EC 114/2021.

Antes, quando os pagamentos dos precatórios estavam regularizados, o cidadão ou empresa conseguia vender o crédito por 85%, até 90% do valor atualizado. Dependendo de quando se vendia, até mais.

Então, supondo, uma pessoa que tinha um crédito em precatório de 250 mil reais, que seria pago no ano seguinte, recebia por volta de 85% do valor. E já era um ótimo negócio para o comprador, porque era uma aplicação que renderia entre 10% e 15% em um ano e, muito importante, do momento da compra do crédito até o efetivo pagamento o valor era atualizado pela SELIC. Ou seja, uma aplicação equivalente à renda fixa e com o mesmo nível de risco (estou falando de precatórios expedidos contra a União Federal, sempre bom lembrar. Os expedidos por estados e municípios devem ser analisados isoladamente).

A EC 114/2021, ao possibilitar novamente o parcelamento dos precatórios com créditos não alimentares e até dos alimentares (acima de 180 salários-mínimos), abriu todo um novo campo para a agiotagem dos fundos de investimentos controlados pelos bancos. Para piorar, Guedes e Bolsonaro anteciparam a data limite para a expedição dos precatórios: antes, para ser pago no ano subsequente, era o último dia útil do mês de junho, agora é o último dia útil do mês de março.

Com a economia parada, o desemprego alto, os salários baixos, as pessoas e as empresas endividadas, cada vez mais idosos (grande parcela dos credores são idosos, os precatórios muitas vezes são resultantes de ações judiciais que tramitaram anos no Judiciário) tendo que ajudar ou mesmo sustentar filhos e netos… formou-se o caldo perfeito.

O resultado é que, hoje, os precatórios, especialmente os alimentares superiores a 180 salários-mínimos e os não alimentares, são comprados por 45% do valor. E ainda cartelizaram, esse percentual virou “lei” não escrita, pelo que posso observar. Tirem suas conclusões se foi proposital ou não.

A coisa cresceu tanto que hoje uma pessoa que tem um precatório expedido em seu nome recebe dezenas de ligações e mensagens invasivas, estilo “telemarketing”, com proposta para vender o crédito. Os fundos de investimento criaram um bando de “zangões” na base atrás desses créditos e quem consegue o negócio ganha uma pequena participação na farra.

Qualquer semelhança desses “zangões” com os sujeitos que usam placas de “compra-se ouro” ou de “empréstimo fácil” nos centros das médias e grandes cidades não é coincidência, é só diferente em escala, tanto que alguns até usam terno e gravata. E a escala, meus caros, não tenham dúvida, é de bilhões, mais uma forma legalizada de o orçamento público ser desviado para o topo da pirâmide.

Essa é só mais uma bomba que o governo Lula deve desarmar, revogar a EC 114/2021, mas, como quase todas, não será fácil. Os interesses econômicos são grandes e nesse caso escondidos pelo “argumento fiscalista”, mas é só gangsterismo baixo mesmo.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.

Ilustração: Mihai Cauli
Clique aqui para ler o artigo “A democracia dos agiotas”, de Bruno Lima Rocha.

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