O calor era inclemente e ainda faltava um mês para a primavera. Não era um calor normal para aquela época, mas era apenas mais uma anormalidade daquele lugar. A normalidade, há muito, despedaçou-se. A realidade fragmentou-se em incertezas e planejamentos expressavam mais os desejos de quem planejava do que possibilidades criadas a partir de probabilidades. E justamente por isso planejavam. Porque sonhavam. Porque desejavam. E era até mais fácil sonhar e tocar adiante os desejos sem as aporrinhações da realidade. Foi assim, numa sala quente de ar-condicionado insuficiente, que o plano começou a ser pensado.

A Boçalidade foi a primeira a tomar a palavra, literalmente, sobrepondo o corpo e a voz à da Ardilosidade que já havia preparado um discurso com meticulosa malícia. Entre palavrões e a fúria que lhe era característica, fez a abertura com uma espécie de diagnóstico. Não da situação, mas dos quereres dela e dos demais ali presentes.

Não queriam, em definitivo, que nada mudasse para que tudo pudesse mudar ainda mais. Já havia um tempo que a destruição havia sido arquitetada, em tese, para depois construir um novo país sobre as ruínas do antigo. Destruiu-se muito e muitos, mas como acreditavam ser necessária ainda mais destruição, não podiam admitir a possibilidade de interromper a marcha em curso. Ainda que a população não a quisesse mais.

Ainda contrariada por ter sido calada de supetão e um pouco provocada pela Discórdia, a Ardilosidade pôde fazer sua planejada fala. Foi direto ao ponto. O povo parecia querer outro rumo para o país. Não poderiam admitir isto. Quem, afinal, seria essa gente que acha que pode decidir sobre a própria vida? Certamente, pessoas influenciadas por aquelas outras que todos ali queriam mortas. A Boçalidade aplaudiu com palavrões de exaltação.

“Golpe, precisamos de um golpe!”, emendou a Ambição, sob aplausos efusivos. “Vamos manter nosso líder, o Grotesco, no poder!”, completou. A Dissimulação, assessora direta do Grotesco, em tom pragmático que escondia o regozijo de executar um golpe, puxou a discussão para os planejamentos. “Precisamos criar um clima, lançando a ideia e, depois, negando. Falamos, e depois dizemos que não era nada disso. De provocação em provocação, chegamos lá”.

A Mentira, sempre prestativa, assumiu a tarefa. “Posso cuidar disso!”. A Suspeita, duvidando da sinceridade da Mentira, ofereceu-se para ajudar. “Posso dizer uma ou outra coisa sobre quem possa atrapalhar, assim, como a Dissimulação sugeriu, dizendo sem dizer, deixando a cabeça confusa de cada um fazer das informações mentirosas e soltas uma história. Vai acabar parecendo coisa da cabeça de cada um, que se sentirá orgulhoso por achar que percebeu alguma verdade”.

A Ambição corou de prazer imaginando o sucesso de destruir e lucrar sem a Constituição ou a necessidade incômoda de ter que respeitar essa gente estranha que não dá dinheiro. Que custa caro e só atrapalha. “Vai dar certo! Há várias ditaduras mundo à fora e todo mundo continua fazendo negócio com elas, não vamos perder nada!”, disse reinflamando de entusiasmo o convescote.

Doutor Cinismo, para quebrar um pouco os olhares de desconfiança que, volta e meia, recebia dos presentes, tomou a iniciativa de encher as taças com o vinho cor de sangue e propor um brinde. A Boçalidade não disfarçava sua ojeriza ao Cinismo, assim como a todos os políticos profissionais como ele, que mudam de lado como ele muda de postura. A Discórdia, percebendo o clima, aquiesceu de pronto ao brinde erguendo a taça, aumentando a indignação da Boçalidade e sendo acompanhada pelos demais. “À Pátria, acima de tudo e a Deus, acima de todos”.

Beberam e se refestelaram de prazeres pelo resto da noite quente comemorando em ato o golpe que trará para aquela terra insuportavelmente quente a frieza da escuridão eterna.

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Ilustração: Mihai Cauli

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