Chama a atenção a permanência ainda hoje da inclinação abertamente antidemocrática de grande parcela das classes dominantes de nosso país.
Atribui-se a Carlos Lacerda – a maior liderança civil da direita brasileira, até hoje – a seguinte frase, proferida a propósito da projetada candidatura de Getúlio Vargas à Presidência da República, em 1950: “Se for candidato, não pode concorrer; se concorrer, não pode ganhar; se ganhar, não pode assumir; e se assumir, não pode governar…”. Como se sabe, Getúlio não só se candidatou e concorreu, como ganhou a eleição.
E, conforme previsto no lema acima citado, desde sua assunção à cadeira presidencial, seus arqui-inimigos – a saber: os latifundiários e os empresários urbanos; seus partidos, sobretudo a UDN; a maior parte da mídia; os militares e parcelas dos extratos médios – tentaram, de todos os modos, impedir que ele governasse. O trágico desfecho das constantes manobras encetadas por estes atores para obstruir o governo do velho líder trabalhista é bem conhecido: seu suicídio em agosto de 1954, fato que terminou adiando em uma década o êxito do putsch então em andamento.
A lembrança destes episódios nos dias que correm é mais do que oportuna, diante da última recorrência das repetidas iniciativas golpistas que marcam nossa história republicana, sempre com o protagonismo das forças armadas. Felizmente, desta feita, a resistência de amplos setores sociais e, notadamente, das instituições superiores do sistema de justiça, a começar pelo Supremo Tribunal Federal, conseguiu barrar a intentona promovida, a seu mando, pela súcia do candidato derrotado na eleição de 2022, visando a mantê-lo ilegalmente no cargo presidencial.
Mais que isso, de forma até então inédita entre nós, e em conformidade estrita às prescrições constitucionais e legais, foram abertos inquéritos policiais, conduzidos pela Polícia Federal, cumprindo determinação da própria Suprema Corte, os quais redundaram em ações penais ali instauradas por denúncias do Procurador-Geral da República, não apenas contra centenas de asseclas do ex-presidente – pela prática direta de vários atos atentatórios ao Estado Democrático de Direito –, mas também, e principalmente, contra este último e alguns de seus principais auxiliares, aí incluídos três oficiais de mais alta patente, um dos quais, ainda preso preventivamente. Tais processos têm revelado, de forma inequívoca, a espantosa trama desencadeada, e felizmente abortada, para deflagrar golpe de estado – antes, durante e depois do referido pleito eleitoral.
Isto tudo é bem conhecido pela chamada opinião pública, a qual vem acompanhando atentamente o desenrolar das ações judiciais em curso – a principal delas, contra o chamado “núcleo central” dos golpistas, já em vias de julgamento próximo. E, da mesma forma, quanto aos inquéritos policiais deflagrados para investigar condutas praticadas para coagir as autoridades responsáveis por aqueles feitos – até mesmo com o inacreditável envolvimento de autoridades estrangeiras.
Aqui se pretende destacar um aspecto destes acontecimentos, aparentemente menor, e que, no entanto, revela a permanência de uma marca perversa de nossa sociedade, a ameaçar continuamente a efetividade de nossa jovem e frágil democracia. Trata-se do emprego, pelos agentes políticos bolsonaristas – assumidos ou velados (caso de alguns órgãos da dita grande imprensa) –, de táticas conspiratórias que, mesmo atualizadas, lembram inequivocamente as ações empreendidas, por Lacerda e seus acólitos udenistas, contra os governos de cunho popular, nos anos 50 e 60 do século passado.
Evidentemente, as circunstâncias sociais e políticas do presente são muito diferentes das então vigentes no país. Mas é justamente isso o que impressiona: em situações historicamente tão diversas, a grande similaridade das condutas conspiratórias da direita brasileira – no que se refere aos seus propósitos, métodos e identidade social dos atores. Agora, o líder popular, Lula – tal qual ocorrera com Getúlio no passado –, não poderia se candidatar; tendo finalmente conseguido se apresentar ao eleitorado, não poderia ter sido eleito; tendo-o sido, não poderia assumir; e uma vez que assumiu, não se pode deixá-lo governar!!
Chama a atenção, pois, a permanência ainda hoje da inclinação abertamente antidemocrática de grande parcela das classes dominantes de nosso país – partilhada, em especial, no estamento militar a seu serviço, como demonstrado pelo historiador Carlos Fico, em livro que acaba de sair (“Utopia Autoritária Brasileira”), que revela sua participação protagonista nos treze golpes de estado, deflagrados ou tentados, desde a proclamação da República. E cabe salientar da mesma forma que, nos dias atuais, a violência e o efeito maléfico de tais ações são amplificados e potencializados em muito pelo uso das redes sociais virtuais, movimentadas pelos algoritmos mediante os quais as big techs articulam os discursos de ódio e mobilizam permanentemente a tropa neofascista.
A explicação para a onipresença histórica do autoritarismo conspiratório das oligarquias nacionais deve ser buscada, primeiramente, na natureza singular de nossa sociedade, marcada pelo patriarcalismo e escravidão, chagas que ainda hoje exercem sua pérfida influência em todos os domínios da vida social. E, igualmente, na constituição do Estado brasileiro, espaço instrumental de dominação montado a partir do arranjo original entre o poder das diferentes classes proprietárias e as camadas dirigentes burocráticas nele instaladas há séculos. Disso já se tratou, inclusive, neste espaço, em outra oportunidade (vide artigo “As elites rastaqueras”).
Para melhor desvelar esta tendência à conspiração antidemocrática, latente na atuação dos tradicionais donos do poder em nosso país, parece conveniente recorrer igualmente ao conceito, já clássico, cunhado por Umberto Eco, acerca do que ele chama de “ur-fascismo” – ou também de “fascismo eterno”. Com este título, em um dos seus notáveis “Cinco Escritos Morais”, o grande escritor peninsular reflete sobre a recorrência contemporânea do fascismo, em modalidades distintas, apenas na aparência, de seus modelos originais das primeiras décadas do século passado, especialmente na Itália e na Alemanha.
No entanto, como adverte ele, a ideologia fascista, hoje como antes, sempre apresentará, envolta naquilo que denomina de “nebulosa”, uma série de sinais distintivos, que não necessariamente precisam estar todos reunidos, bastando alguns deles para caracterizá-la como tal – destacando-se entre elas o anti-esquerdismo, o iliberalismo, a repulsa à razão, à ciência e às artes, o nacionalismo exacerbado, o culto da raça e do passado mítico, a rejeição da democracia e da ideia de conflito.
Pois, adaptando este conceito ao fenômeno aqui considerado – o permanente comportamento conspirador e autoritário da direita brasileira –, podemos defini-lo como o “golpismo eterno”, caracterizado pela permanente disposição de impedir, inclusive pela força, que o Estado Democrático de Direito opere também em favor das demandas e direitos das classes populares. Do que os ataques e arreganhos golpistas que o país testemunhou nos últimos anos – que ainda nos ameaçam nos dias que correm – são a ilustração mais eloquente e perversa. (Publicado por Sul 21)
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli
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