Os desafios de Lula

A arremetida do poder econômico  

Ainda falta mais de um mês para que o presidente eleito Lula da Silva assuma suas funções no Palácio do Planalto e os grupos empresariais e banqueiros já se encontram exercendo pressões sobre o futuro governo. Uma declaração de Lula a respeito da importância da política social e do combate à fome sobrepondo a austeridade dos gastos governamentais levou a uma enxurrada de declarações desmedidas dos setores representantes do poder econômico. Inclusive, um deles chegou a ameaçar que se Lula continuar “peitando” o mercado, o impeachment à sua gestão não irá demorar muito. 

A impertinência destes setores ainda é reforçada pela imprensa que faz eco à chantagem exercida pelos grupos econômicos que temem perder seus privilégios e o controle sobre os trabalhadores, mantendo o arrocho salarial e as práticas contrárias ao mundo do trabalho com o reforço da precarização e a perda de direitos trabalhistas consagrada no governo de Bolsonaro. 

As conquistas experimentadas por setores populares e pela classe trabalhadora durante os governos do PT foram consideradas insuportáveis pelos detentores do grande capital que têm sustentado seu “sucesso” econômico e competitividade internacional em cima de extrema exploração dos operários, tal como ocorre em grande parte dos países da região. A maior vulnerabilidade dos trabalhadores implica concretamente uma maior possibilidade de extrair riqueza dos setores laborais, o que funciona como uma espécie de mantra mágico para empresários gananciosos e atrasados. 

Por exemplo, para estas classes era intolerável a possibilidade de que as empregadas domésticas pudessem viajar de avião para Miami ou que um subordinado pudesse adquirir um carro. Esse quadro expressa não somente uma repulsa cultural das classes médias brasileiras, mas sobretudo representa um indicador de que houve prosperidade econômica da classe assalariada, o que é simplesmente inaceitável para os padrões de exploração alvejados pelos estratos industriais. 

A reação dos representantes da indústria e das finanças parece demasiadamente histérica, mas tal veemência pretende enquadrar e constranger o futuro governo em uma camisa de força orçamentária que o impeça de atingir seus interesses. Seria o caso de legislar com urgência uma reforma tributária que onere de maneira progressiva as fortunas e o lucro das grandes empresas para desta forma obter os recursos necessários para financiar os programas sociais do governo entrante. 

Definitivamente, o alarmismo expressado pelos representantes do capital e a invocação da responsabilidade fiscal não vem mais que confirmar uma estratégia de dissimulação de seus interesses espúrios que em nenhuma hipótese podem se confundir com os interesses da nação e do povo brasileiro. Eles calaram durante os quatro anos do regime de Bolsonaro, tolerando e aceitando sem reservas as inúmeras violações ao teto de gastos infringidas pelo atual governo. 

O Brasil e sua herança maldita

Uma das consequências mais nefastas do bolsonarismo neofascista na sociedade e no Estado brasileiro foi o bloqueio do futuro. A necropolítica de Jair Bolsonaro e suas hordas bárbaras incutiram medo nas pessoas, estimularam o privatismo, buscaram restringi-las ao espaço vital da mera sobrevivência, do medo que refuta a política autêntica, da relação fértil entre corpos e mentes ativas. Pois ao sequestrar a esfera pública argumentativa submetendo-a aos delírios paranóicos dos algoritmos da extrema direita, Bolsonaro fechou as instituições às energias oriundas da manifestação pluralista dos diversos atores políticos, especialmente dos trabalhadores brasileiros, das classes proletárias, ao tempo que impunha a pauta de costumes em detrimento dos assuntos estruturais na agenda. Junto com isso, mencione-se também o trabalho de degradação da linguagem, tabulada pela abjeta pornografia de um discurso intolerante, ávido pela destruição física e simbólica dos inimigos. 

A dinâmica autocrática do bolsonarismo corrompeu a dialética contraditória do salutar conflito que modula a construção subjetiva do Estado Democrático de Direito. Nesse sentido, a ascensão de Bolsonaro como consumação do movimento golpista deflagrado em 2016 na deposição ilegítima da presidenta Dilma Rousseff assinala o êxito da estratégia das classes dominantes e dos aparatos de Estado de rever a ideia de Brasil, de projeto de país, ao preferir regurgitar o passado reacionário da República Velha e de nossa inserção agrarista e passiva nas relações econômicas internacionais, erodindo as bases da Constituição de 88, de seus fundamentos, princípios e comandos. Na verdade, estreitaram os canais da Sociedade Civil, dos circuitos da economia política ao optar por um modelo de desenvolvimento subalterno, pífio, preso ao papel de produtor de commodities agrícolas e divorciado da construção de uma nacionalidade substantiva, de fato nacional-popular, integradora de todo povo e de suas potencialidades produtivas, criativas, de uma economia de ritmo intenso e conciliador dos brasis, de suas distintas regiões que o formam. 

Fora a destruição da cultura brasileira ao estigmatizar os elementos africanos que orientam nosso fazer religioso e cotidiano, estigmatizar os nordestinos, perseguir tenazmente as mulheres, gays, os “diferentes”, num triste espetáculo de hostilidade às bases da diversidade brasileira. Ao invés do reconhecimento do Outro como intrínseca referência da singularidade que nos constitui, predica-se por meio do fascismo a sua negação peremptória e mais do que isso, sua conversão na causa de todos os males nacionais. Assim, cria-se a antessala da “Solução Final”, do expurgo, a eliminação de quem divirja da voz monocórdica do sistema.  

Agenda imediata e mediata para reconstrução democrática do país 

O Brasil precisa mais do que nunca retomar a veia de sua construção, ou melhor de sua reconstrução, após o desmonte geral das instituições, dos direitos, prerrogativas e garantias assentadas na Constituição Cidadã de 88. A primeira e inadiável tarefa é romper com as vedações estabelecidas pelos sigilos indecorosos do governo Bolsonaro sobre os dados do Estado. Orçamento secreto, ocultamento de esquemas de corrupção variados, incluindo de familiares da família miliciana no governo, maquiagens, falsificações de informações, apagão de computadores que armazenavam dados da Administração Pública são alguns dos exemplos antirrepublicanos da prática governamental de Bolsonaro. 

Sem o acesso a todas essas informações não é possível estabelecer cenários de governabilidade, muito menos definir o planejamento e os investimentos necessários para o resgate e promoção dos direitos sociais à educação, à saúde, à habitação, de aumentos anuais do salário mínimo, de majoração das verbas para as universidades, para o microcrédito, para o fomento à inovação tecnológica, à cultura, etc. Afinal, a cidadania vista sob uma perspectiva concreta requer uma maior e mais efetiva presença do Estado como instrumento da soberania popular, notadamente no enfrentamento das desigualdades sociais. 

Outra tarefa é o inadiável combate à fome. O controle de preços dos produtos básicos através de uma política de preços que valorize o consumo interno de massas, ao contrário de hoje, já que toda a produção alimentícia é voltada exclusivamente para geração de divisas no mercado externo. Produzimos proteína animal, soja, laranja, milho e tantos outros gêneros de alimentos para serem enviados para Europa, EUA, China, enquanto mais de 30 milhões de brasileiros padecem da fome mais execrável. 

Não menos importante porque possui reverberação na própria condição de vida material das pessoas é a recuperação da agenda democrática entre nós. O solapamento do regime de direitos fundamentais, os ataques ao judiciário como instância autônoma da viabilização da cidadania, bem como o assalto do legislativo pelo poder da grana, dos negócios inconfessáveis feitos na calada da noite demonstram de maneira inequívoca a dificuldade de reequilibrar os poderes do Estado, reajustando-os aos anseios populares e aos ditames programáticos da nossa Constituição Dirigente. 

Nesse sentido, destaca-se ainda a sensível questão de como repensar a relação entre sociedade brasileira e Forças Armadas. A atuação tutelar que historicamente o poder militar exerce sobre as instituições sempre pairou como uma ameaça e a realidade de uma história repleta de golpes, infelizmente, traz desalento. Desde 2014 tal quadro deteriorou-se dada a fragilidade da hegemonia burguesa, de seus partidos e associações, na vida pública. 

Por isso, as classes dominantes recorreram, mais uma vez, ao Exército como uma espécie de “poder moderador” para interditar “os de baixo”. Generais de uma generalizada vocação arbitrária, mandonista, convictos de sua supremacia auto atribuída de representantes “técnicos” da nacionalidade pátria. O velho argumento egresso dos escritos do ultraconservador, ideólogo da direita nativa, Oliveira Viana, acerca da necessidade instrumental do autoritarismo como meio de chegada errática a uma sempre futura e improvável “democracia”. 

A segurança pública, por exemplo, deve ser reservada aos civis, às linhas gerais de articulação complementar entre preservação da vida, plexo de direitos e a justiça social a ser realizada pela ação estatal. O papel central das Forças Armadas na trama do Golpe de 2016 e na ascensão do neofascista Bolsonaro ao governo explicitou a perseverança autocrática dessa instituição em nossa vida e seu completo divórcio do povo e de suas demandas materiais e subjetivas. Agem como braço operacional do Capital Financeiro Internacional e do imperialismo dos EUA, rompendo com todo e qualquer laivo de desenvolvimento soberano, de inscrição ativa na economia e na política mundial. 

Sem resolver esse gargalo viveremos eternamente sob as sombras dos coturnos castrenses. Mesma preocupação devemos ter com a questão agrária, com o latifúndio que gera cativos à margem dos direitos e do acesso a bens básicos, além de reproduzir aspectos coloniais em nossa formação sociopolítica e cultural. Como também a indispensável questão da regulamentação normativa, constitucional da mídia para coibir desta forma o poderio mastodôntico do Capital nos meios de comunicação. A prática oligopólica, o cruzamento de propriedade de meios de informação, a seletividade partidária dos donos de TV, rádios e jornais, precisam ser devidamente enfrentados caso queiramos uma democracia no Brasil. 

Por fim, é imperativo uma reforma profunda do sistema de justiça no Brasil. Abrir o direito e sua dicção para as maiorias, aprofundar o diálogo participante sobre a Constituição e o esteio programático vinculativo dos poderes e agentes públicos faz-se dramaticamente indispensável. O abarrotamento de penitenciárias com pretos, a barbárie institucionalizada do racismo nas polícias, a militarização da segurança e o recrutamento elitista dos integrantes do sistema de justiça são a prova incontornável da inviabilidade de suas práticas com o Estado de Direito. 

Contudo, tais mudanças, inversões de prioridade, reconstruções institucionais serão feitas num contexto complexo, junto a uma frente ampla e contraditória, sem olvidar as fricções nas ruas patrocinadas pelo protofascismo bolsonarista. Uma extrema direita que não se encontra disposta a participar do jogo democrático sem dúvida permanecerá enfrentando decididamente os avanços do governo e tentando bloquear toda e qualquer política que seja elaborada em benefício da população. 

Mas, por sua vez, o governo que se inicia no dia 1 de janeiro de 2023 deverá também fazer uso de todo seu arsenal e repertório de mobilizações para manter intacto o apoio popular e expandir permanentemente nos diversos territórios, favelas, sindicatos, universidades, centros comunitários, organizações e movimentos sociais, o ativismo alerta e entusiasmado que apoie as urgentes transformações que a nação precisa para destravar seu futuro. 

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e Revisão: Marlon Martins

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