O Jardim Botânico de Porto Alegre tem um palco amplo de madeira ao ar livre. Às vezes imagino uma conversa entre todos diante do palco num domingo. Brinco com essa ideia para o começo da primavera com todos vacinados, ainda de máscaras e sem aglomeração. Mataríamos as saudades de conversar, abraçar, com máscaras, um rosto para cada lado.

Muitos sentimentos são misteriosos, mas poucos como a saudade que é um sentimento universal, uma luz que ilumina as ausências. Saudade é uma expressão do amor a familiares, amigos ou uma casa da infância que só existe na memória. No filme “Cidadão Kane” de Orson Wells, aparece à palavra “Rosebud” escrita em um trenó da infância que é recordada. Palavras e imagens da infância que irrompem em sonhos. Hoje, como não sentir saudades das conversas intermináveis, em que são narradas histórias de vida, aventuras empolgantes? Saudades dos beijos e abraços que dão um calor corporal essencial para empolgar a vida.

O whats é ótimo, as conversas via celular essenciais, o zoom diminui as distâncias, mas sentimos saudades dos encontros presencias. Lembrei agora de “O livro dos abraços” de Eduardo Galeano com suas histórias sem fim, em especial uma delas, talvez de outro livro. O escritor tinha um cachorro que era sua companhia de trabalho, parceiro de caminhadas, e um dia o cachorro morre. Galeano ficou saudoso, entristecido quando saiu pela primeira vez sem seu fiel escudeiro, e viu uma menina pequena falando com as flores. Ela caminhava e cumprimentava uma a uma das flores, e aí ficou emocionado, aliviado das saudades de seu cachorro.

Saudades a gente mata, para que elas não nos matem, daí a importância de trazer o passado para o presente. Nos sonhos aparecem os visitantes noturnos, os sonhos trazem cenas, gente, momentos que se conectam entre si e com o presente. Saudade, portanto, é a expressão de amor a tudo que merece ser amado. Já a melancolia busca um passado como um estado de tristeza, uma sombra pesada. A nostalgia é uma fixação num tempo determinado do passado, um lugar, uma cidade, mas cuja memória gera dor. Portanto a saudade expressa o desejo de uma lembrança que é ao mesmo tempo nostalgia e alegria, é o desejo de reviver o passado. Ter saudades dos que fizeram bem ao longo da História e vivem na gente, que marcaram a realidade do que cada um é hoje. Saudades é a expressão do amor invisível e é essa capacidade, a invisibilidade, que permite, lentamente, o desapego, mas não o esquecimento.

Que saudades do teatro, quando se pode ver os atores narrando histórias que tocam a alma. Saudades do escurinho do cinema, onde a vida é refletida, abrindo espaços para conversas. Saudades das livrarias a que muitos não têm ido, e nelas a gente encontrava conhecidos. Saudades da vida presencial que vai voltar mesmo com máscaras e cuidados.

Saudades, finalmente, de um país sorridente, pois nos últimos anos uma onda de ódio tomou conta do espaço. Saudades da democracia vivida com um mínimo de respeito e dignidade. Essas saudades são para não esquecer que já se viveu aqui uma realidade mais justa e humana. Aos poucos vamos matando as saudades da coragem que vem voltando, saudades da alegria da luta, no meio do luto. E se nas saudades se imagina algo bom do passado, vale a pena sonhar com o amanhã que está sendo germinado. Sonhar aqui com matar as saudades é antecipar a graça que vamos sentir na primavera. Talvez, esteja agora matando as saudades dos tempos encantados.

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