Enquanto os modelos de aquecimento global eram apenas projeções para o futuro próximo, a incapacidade das elites com poder decisório de realizar as ações necessárias para evitar o aquecimento global poderia ser interpretada como uma espécie de síndrome de São Tomé, o santo católico que só acreditava naquilo que conseguia ver. Agora, todos estamos vendo que os modelos apresentados pelos cientistas do clima erraram em um único ponto: os eventos extremos estão ocorrendo numa escala maior e mais cedo do que foram previstos.

É exatamente neste momento que a maioria no Congresso Nacional aprovou o projeto de lei sobre o marco temporal da ocupação de terras por povos indígenas (PL 490/07). Esse projeto restringe a demarcação de terras indígenas àquelas tradicionalmente ocupadas por esses povos em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição federal e impede qualquer área que não estivesse ocupada antes desse marco temporal de ser reconhecida como dos povos originários, independentemente da causa. Além disso, o projeto prevê a permissão para plantar cultivares transgênicos em terras exploradas pelos povos indígenas; a proibição de ampliar terras indígenas já demarcadas; adequação dos processos de demarcação em curso às novas regras; e a nulidade da demarcação que não atenda a essas regras.

O projeto é tão abjeto que a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) o caracterizou como evidente “violação do Direito Originário dos Povos Indígenas”, que é reconhecido desde o Brasil Colônia. “É uma tradição do direito brasileiro, com disposições semelhantes na primeira Lei de Terras do ano de 1850 e nas Constituições de 1934, 1937, 1946 e 1967”. Em outras palavras, o “desenvolvimento” defendido pela atual maioria na Câmara de Deputados é um retrocesso ao período anterior ao segundo reinado, sob Dom Pedro II.

A civilização que produziu uma tecnologia para viver

Os conquistadores de outrora e os seus sucedâneos na atualidade sempre se autodefiniram como os portadores da “civilidade” e, assim, legitimaram a destruição de culturas e civilizações diferentes ao longo da história. Nos dias de hoje, essa retórica beneficia apenas o 1% dos hiper-ricos da população, cuja causa única é a defesa de um modelo de sociedade que interessa a eles mesmos. Tanto que, apenas na última década, concentraram 50% da riqueza mundial, segundo a Oxfam.

Diante da aceleração dos problemas ambientais para níveis alarmantes e das desigualdades sociais que condenam milhões de pessoas a viverem em situação cada vez mais precária, não é mais racional identificar a realidade do mundo atual como o triunfo da civilização contra a sua negação, a barbárie. Assim, ao invés de atacados, os povos originários deveriam ser vistos como fonte de aprendizado sobre como construir uma civilização capaz de aprender a conviver em interação com as florestas e que constituiu a sua identidade sem precisar cindir cultura e natureza.

Quando os defensores do capitalismo dominado pela financeirização falam em “liberdade”, referem-se tão somente às medidas necessárias para “libertar” o capital de qualquer controle por parte do Estado e/ou da sociedade e, assim, dar curso à sua natureza destrutiva. Essa necropolítica não tolera a diversidade e precisa sabotar permanentemente toda forma de democracia. Seus defensores não titubeiam em desestabilizar governos que fogem do seu controle e em financiar golpes – basta, para isso, que os 1% dos muito-ricos sintam que seus interesses correm riscos.

A concentração de tanta riqueza e poder nas mãos de tão poucos é a principal razão da sabotagem de todas as formas de democracia em curso no mundo. Uma ordem tão hipertrofiada só pode ser mantida por meio da negação de tudo aquilo que é diferente e possa desnudar a legitimidade de uma sociedade que, em nome da “civilização e do progresso”, conduz aceleradamente a humanidade para a barbárie. A aprovação do Marco Temporal pelo Congresso Nacional demonstra a intolerância do neoliberalismo, é um ato de fúria contra a civilização que desenvolveu a mais imprescindível das tecnologias: a de como preservar a vida.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
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