Culpar o sujeito por seu oposto não é novidade. Quem nunca ouviu um analista político colocando a culpa pelo desastre bolsonarista em Lula? Essa interpretação da história tem feito de nosso ex-presidente alguém tão poderoso que ele seria responsável por si próprio e por seu oposto, em um tipo de onipresença de fazer inveja a muita divindade. Mais do que uma análise da história recente com base na dialética de Hegel, tais extrapolações por parte de filósofos, políticos, sociólogos e historiadores podem ser mais bem descritas como uma repetição fácil e irrefletida de máximas contraditórias e inconsistentes.

Aqui nós abordamos um tipo de discurso muito similar à inversão descrita acima, aquele que aponta os que mais produzem conhecimento como responsáveis pelo seu oposto, ou seja, pelo não saber.

Professores e cientistas, em especial aqueles de universidades públicas, têm sido alvo de certa perseguição, o que é comum em regimes autocráticos tanto de esquerda quanto de direita. Quanto pior o governo, pior ele tratará seus professores, o que encontra eco em outros setores da sociedade. Economistas criticam seus salários; políticos que se autointitulam liberais os tratam como se fossem doutrinadores comunistas que só falam de política em sala de aula; críticos de todo tipo os acusam de serem arrogantes, de se encastelarem nas universidades e de não terem a menor preocupação em estabelecer contato com o “cidadão comum”. Seriam, inclusive, responsáveis, em algum nível, pela ignorância da população, já que seus jargões científicos não seriam inteligíveis para ela. A expressão “torre de marfim” exemplifica essa percepção. Ela, que tem origem religiosa e se refere a um mundo puro, quase celestial, dissociado de preocupações mundanas, é também aplicada, em uma versão pejorativa, a essa entidade metafísica que chamamos de academia.

Mas seria verdade ou mito esse encastelamento acadêmico? Uma pista na direção da resposta é dada pela outra crítica que se faz aos professores: a de que eles só fazem doutrinar em sala de aula. Ora, professores que se metem em política não podem ser acusados de se encastelar. Muito pelo contrário, ao falar de política ou fazer política em sala de aula, o que um professor de biologia, de economia ou de medicina está fazendo é, justamente, transpor suas paredes e se conectar profundamente com o mundo. Nesse ponto nos deparamos com uma falha evidente de tais generalizações, agora, justamente, com o mito de que eles são comunistas. É extremamente ingênuo achar que engenheiros, advogados, farmacêuticos, médicos, físicos, agrônomos, psicólogos, historiadores e matemáticos, para mencionar apenas alguns dos perfis ligados a cursos universitários, tenham identidade político/ideológica homogênea e passível de generalização. Além das naturais diferenças entre os métiers, existe uma poderosa pluralidade no nível individual, mesmo porque as universidades públicas congregam professores e alunos de todo o Brasil, de todas as etnias e classes sociais. Isso foi possível graças aos concursos públicos, às cotas e ao sistema de classificação oferecido pelo ENEM. Mas isso é outra conversa. Nosso tema central aqui é esse suposto encastelamento.

Quanto a isso, há alguns cientistas que, de fato, apesar do esforço das universidades para que todos façam projetos de extensão, são tão dedicados às suas investigações que passam a ignorar todo o mundo a sua volta. Eles despertam a ira, inclusive, de colegas acadêmicos que, não raro, vêm a público reclamar e reforçar a impressão da existência de tal torre de marfim. Dois bons exemplos de críticos dentro da academia são o autor israelense de sucesso Yuval Harari e o brasileiro Luiz Pondé. Pessoalmente, entretanto, acredito que a Universidade faça muito bem em aproveitar esses e outros tipos similares de nerds no que eles têm de bom. Afinal, boa parte do desenvolvimento tecnológico e científico que alcançamos se deve à diversidade universitária e ao foco desses pesquisadores, por mais arrogante que sua postura possa parecer a uma primeira vista.

Isso nos remete a um outro ponto importante. Não é fácil transportar o conhecimento científico, principalmente aquele de alto nível, para a população como um todo. Como cientista e pesquisador, sei que nossa linguagem incorpora conceitos que servem a uma estrutura de saber que, frequentemente, sequer está ao alcance de pares acadêmicos. A evolução de diferentes áreas demandou esse refinamento de conceitos e também uma grande especialização de cientistas. Para que esses sejam compreendidos fora de sua “bolha de pesquisa” é consensual a importância da formação de profissionais da comunicação científica, geralmente jornalistas ou professores que dispõem dessa aptidão (como André Trigueiro, Luiza Caires, Pirula, Drauzio Varela, Marcelo Gleiser, entre outros). Mas essa não é uma demanda que deva recair somente sobre cientistas, afinal, seu papel como tal é o de produzir ciência e, como acadêmicos, dar aulas em universidades. A sociedade como um todo, inclusive cientistas, deve se mover na direção de viabilizar tais pontes.

Independentemente dessa dificuldade em transmissão e tradução do conhecimento acadêmico, nesses tempos de crise, o que assistimos foi o oposto do esperado pelos que repetem a máxima da torre de marfim. Contra a vontade do governo e sob risco de perder financiamento (como observado pelo professor Pedro Hallal, da UFPel, em caso publicado no The Lancet), cientistas vieram a público e enfrentaram ferozmente uma legião de robôs humanos e não humanos disseminadores de fake news e teses conspiratórias negacionistas. Colegas como Margareth Dalcolmo (FIOCRUZ), Miguel Nicolelis (Universidade de Duke), Atila Iamarino (USP), Natalia Pasternak (Instituto Questão de Ciência), Alberto Chebabo (UFRJ), Monica de Bolle (Observatório COVID-19 BR) e Melannie Fontes-Dutra (UFRGS) encontraram o espaço possível em diferentes tipos de mídia e encheram o público com informação técnica de qualidade e de fácil compreensão.

Esses vieram a público incansavelmente informar e pedir que todos que pudessem ficassem em casa; explicaram por que a cloroquina e a ivermectina não poderiam ser usadas como pretendiam o governo e meia dúzia de médicos que preferiram esquecer o que é método científico; e atacaram todo tipo de negacionismo sobre a doença, desde as frases que minimizavam sua periculosidade até aquelas que questionavam a eficácia do uso de máscaras. Foram os acadêmicos também os primeiros a denunciar a periculosidade dos boatos sobre as vacinas e foram eles que provocaram as discussões sobre as implicações factuais, morais e éticas da defesa do efeito de rebanho “natural” como solução para a crise.

Esses se impuseram, mesmo em um contexto em que professores e a própria ciência são achincalhados a todo momento por governantes que, por outro lado, são totalmente lenientes diante do avanço do movimento negacionista. Não é preciso ser genial para encontrar na base do governo promotores do terraplanismo, do movimento antivacina, do design inteligente (criacionismo disfarçado de ciência), etc.

Então, esse trabalho deixa de ser um puro empenho de educação e inclusão científicas e passa a ser uma batalha contra a desinformação e o negacionismo com sua imensa capilaridade social. Como demandar conhecimentos sobre epistemologia de pessoas que foram ativamente convencidas a crer que a terra é plana ou que não acreditem em evolução?

Claro, sempre haverá aqueles que dirão que a culpa dessa “ignorância” seria, igualmente, de cientistas e de seu encastelamento, uma vez que isso teria criado o substrato adequado à aceitação do negacionismo. Só que as coisas não são tão simples. Há fortes evidências de que a difusão de posturas negacionistas na sociedade não se deva a uma passiva falta de educação da população. Por exemplo, um estudo publicado em 2015 nos “Anais da Academia Americana de Ciências Sociais e Políticas” indicou que o berço do movimento negacionista não é o cidadão pobre e cientificamente desinformado, muito pelo contrário. Diferentemente do esperado pelo senso comum, a negação é mais forte entre pessoas mais instruídas sobre ciência e política em um processo denominado por psicólogos “raciocínio motivado”. Essencialmente, parte da população não procura a verdade, mas sim uma zona de conforto que não ponha em xeque a sua própria identidade como pertencente a um grupo, seja ele religioso ou político. Essa parcela da população procura na leitura apenas justificação para as suas crenças e não crescimento intelectual. Quanto mais informado, mais instrumentos o interlocutor tem para montar a defesa contra os fatos.

A questão toda residiria então no que representaria a zona de conforto de cada um, o que também é corroborado por estudos que mostram que a simples exposição de militantes de esquerda e de direita aos argumentos e dados do grupo oposto, ao invés de diminuir seu radicalismo, o magnificou (estudo feito antes da eleição americana de 2016).

Isso explicaria também a leniência de pessoas razoáveis e bem informadas à propagação de injúrias, mentiras e falácias disfarçadas de pensamento científico em seu grupo de amizades. Afinal, o importante não é tudo o que se diz no grupo, mas sim, a preservação da identidade de seus membros como pertencentes a ele, seja pela questão religiosa, seja pela política. Possivelmente, inclusive, o raciocínio motivado seja mais capaz de explicar o negacionismo que a simples falta de acesso a professores e a dados científicos. A sensação de pertencimento e mesmo o confronto entre o valor moral que se confere a dogmas religiosos ou à busca da verdade se mostram cada vez mais participativos na aceitação ou não dos fatos que batem à porta do cidadão.

Nesse sentido, os cientistas estão entre aqueles que são mais capazes de romper este ciclo de autoengano por terem às mãos ferramentas epistemológicas e um senso de ética desenvolvidos por séculos sem o entrave de dogmas. Esses instrumentos nos servem, exatamente, para examinar os dados que nos chegam do mundo de forma objetiva. Embora haja exceções, de um modo geral, entre acadêmicos, o valor moral da busca pela verdade supera as crenças individuais, uma vez que é justamente essa a identidade de seu grupo. Daí, o estrondoso sucesso das ciências.

Cabe ressaltar que, mesmo sendo a maioria dos cientistas religiosa, eles não costumam misturar as coisas. Aqueles poucos que o fazem têm suas “teses” destruídas em pouco tempo pela dinâmica acadêmica, que, como já dito, valoriza a estrutura epistemológica do pensamento e não a crença do indivíduo. Confundida como comportamento arrogante, tal postura é reflexo, na verdade, da estrutural humildade da categoria diante da complexidade do mundo. Independentemente da existência ou não de acadêmicos arrogantes, como grupo, temos plena ciência que todo o nosso saber científico é falível e, por premissa, ao menos hipoteticamente, transitório. Portanto, dogmas ficam de fora por definição.

Ainda há muito o que se evoluir na academia. Agências de fomento devem estimular mais profissionais que se dediquem ao público e esse trabalho deve ser mais reconhecido entre os pares. Podemos também fazer um esforço maior na direção de adaptar a nossa linguagem à comunicação com o grande público e de formar profissionais especializados em difusão científica. Simultaneamente, ao fazermos este tipo de reflexão e autocrítica, temos que nos cuidar para não reforçarmos o mito da torre de marfim. Este serve somente à causa alheia em uma espécie de “fogo amigo” na guerra contra o obscurantismo. Nossas palavras estão sempre sendo distorcidas e usadas por fundamentalistas para colocar em descrédito cientistas e mesmo os fatos.

Por fim, é necessário lembrar que, infelizmente, assim como o Lula no exemplo dado no primeiro parágrafo, acadêmicos não são onipresentes. Eles não conseguem batalhar pela ciência em nível federal, estadual e municipal; ao mesmo tempo angariar recursos para seus laboratórios; dar aulas; orientar alunos; administrar instituições de ensino; fazer pesquisa e publicá-las em periódicos internacionais (como demandado por agências de fomento); se secretariar, pois são raros aqueles que contam com ajuda para fazer relatórios, prestações de contas, burocracias universitárias etc.; estimular trabalhos de difusão científica; e ainda estar na rua chacoalhando as pessoas que resolveram acreditar que a terra é plana. Nós até que tentamos isso mas, como acadêmicos, somos responsáveis somente pelo saber produzido na universidade, não podendo ser imputada a nós a culpa da produção e difusão do seu oposto, o não saber.

Esse espaço, o da ativa desinformação, está ocupado por grupos organizados que possuem endereço, afiliação política e interesses muito claros. Eles é que devem ser o alvo de crítica. Fechar os olhos a isso e criticar acadêmicos é puro cinismo. Como demonstrado acima, essa conta não é nossa.

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