Conversando, a gente se entende, apesar de desentendimentos também serem feitos de palavras. Mesmo nas guerras mais sangrentas, em que tiros e explosões são respostas, ainda assim, o palavrório não para. Culpa-se daqui, incentiva-se dali, mente-se quase o tempo todo. Matamos e morremos falando. Vivemos falando. Criamos com palavras poesias, filosofias, ciências, mentiras e enganações. O bem e o mal cabem entre os sons da fala.

No filme, a sociedade disfuncional se destrói quando a comunicação é impedida e as pessoas são tensionadas com ruídos medonhos e desinformação. Roberta assistiu ao filme angustiada. Esperava que tivesse um desfecho, com a trama entre os personagens concluída, mas o filme não era como a maioria. Apenas terminava. Assim, de repente. Como se fora interrompido no meio.

Porque a história que o filme conta está no meio, ela pensou. Porque a história do filme não é a história dos personagens, mas a história de todos nós, que só não nos matamos uns aos outros porque ainda há algumas distrações e alívios para nossas angústias. Porque ainda nos comunicamos e, de conversa em conversa, de imagem em imagem, criamos certezas que nos enquadram num modo acomodado de convivência.

A palavra “acomodado” ficou martelando em sua cabeça. É uma palavra ressentida e feia, pensou. Mas é mesmo a que melhor descreve esta vida cheia de injustiças, perversidades e explorações que só são possíveis porque acredita-se que a injustiça não é injusta, ou então que ela é inevitável. Que as perversidades não são perversas. Que a exploração não é exploração. E tudo isso só é possível porque nos comunicamos. Sem todo o palavrório e a pantomima das tevês, rádios, textos e redes toda a ilusão que acomoda este mundo tão injusto não seria possível. Fala-se muito apenas para iludir. Para se dizer verdades, poucas palavras bastam.

Se lembrou da reunião que teve na semana passada. O chefe jovem falou por duas horas sobre os valores da empresa. Roberta sabe que o verdadeiro valor da empresa é o lucro. Que a estratégia é comprar por cinco e vender por dez. Que a gestão é fazer isso funcionar gastando o menos possível. Que o marketing é fazer as pessoas comprarem o que não precisam. Que tudo, absolutamente tudo, tem a ver com dinheiro. Mas ninguém diz isso. Ela ouve todo um amontoado de palavras e termos em inglês sobre o target que deve ser atingido com um budget desafiador. Sobre como os colaboradores são a alma da empresa e outras tantas falas bonitas construídas com palavras higienizadas, domadas e controladas, mas que são facilmente desmentidas pelas ações mais corriqueiras.

Mas não é só a sua empresa que é assim. Todas elas são. E os trabalhos que não são em empresas também têm suas ilusões, suas mentiras acomodantes. O mundo todo é assim. E o mundo todo se comunica o tempo todo. E, hoje, mais do que ontem, porque tem a internet nos inundando de palavras, imagens e sons. Distraindo e nos tirando o sono. Roubando nosso tempo em dedilhar de telas de celular.

Todos esses pensamentos a entristeceram. O filme a entristeceu. Pensar em sua vida e neste mundo tão confuso a entristeceu. Buscou livrar-se da tristeza como no filme. Sem concluir seus pensamentos. Sem apaziguar sua mente decifrando o enigma da nossa alienação perversa. Da comunicação confusa da internet que nos entulha a mente. Da sua vida que não encontra sentido nem satisfação.

Soltou um palavrão. Ligou novamente a tevê. E esqueceu-se de si e de seus pensamentos tormentosos assistindo ao último capítulo daquela série engraçada enquanto comia uma bacia de sorvete de creme.

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Ilustração: Mihai Cauli  
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