No dia 20 de setembro de 2023, os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva, do Brasil, e Joe Biden, dos Estados Unidos, divulgaram uma declaração conjunta afirmando o compromisso de promover o trabalho digno. No documento, levantam a preocupação com a “digitalização das economias” e o uso da inteligência artificial no mundo do trabalho. Cinco pontos resumem o documento:
1) proteger os direitos dos trabalhadores, tal como descritos nas convenções fundamentais da OIT (Organização Internacional do Trabalho), capacitando os trabalhadores, acabando com a exploração de trabalhadores, incluindo trabalho forçado e trabalho infantil;
2) promover o trabalho seguro, saudável e decente, e responsabilização no investimento público e privado;
3) promover abordagens centradas nos trabalhadores para as transições digitais e de energia limpa;
4) aproveitar a tecnologia para o benefício de todos;
5) combater a discriminação no local de trabalho, especialmente para mulheres, pessoas LGBTQI e grupos raciais e étnicos marginalizados.
Quatro anos atrás, ainda durante o primeiro ano do governo Bolsonaro, os autores deste ensaio sugeriram pensar o trabalho e relacioná-lo com as formas de organização sindical no novo contexto. É este texto que está sendo publicado. (NR)

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Vivemos uma mudança de período histórico em escala global. O acirramento dos conflitos sociais a partir de 2008 não dizem respeito apenas à crise, mas também à profunda reestruturação produtiva provocada pelos avanços tecnológicos e à emergência da China como nova potencia global rivalizando com os EUA.

O posicionamento da China como principal plataforma industrial do mundo e o deslocamento de parte das indústrias do ocidente para a Ásia, acompanhados da crescente robotização da produção, extinguiram empregos industriais de melhor remuneração em larga escala na Europa, EUA e em polos industriais da América Latina. Milhões de operários perderam seus empregos, seja por verem suas fábricas deslocadas para a Ásia, seja pela reestruturação produtiva que tornou suas funções obsoletas. Este é um processo irreversível com fortes consequências sociais e políticas. Para gerações de trabalhadores que pensavam ter saberes e profissões garantidas para toda a vida, o futuro carrega uma enorme insegurança. Suas referências e seu mundo desmoronaram. Revolução digital, automação ou segunda idade da máquina são alguns nomes dados ao processo. Ainda em estágios incipientes, novos instrumentos da produção material escapam à lógica industrial e geram resultados ao mesmo tempo promissores e devastadores.

A expansão tecnológica prevista para os próximos anos inclui um crescimento exponencial da capacidade de armazenar e processar gigantescas bases de dados. Não por acaso, rankings recentes das empresas mais valiosas do mundo são encabeçados por empresas movidas por dados gerados pelos usuários. Para além de alimentar a indústria mais lucrativa da atualidade, dados, algoritmos, suas ciências, tecnologias, usos e aplicações oferecem possibilidades para melhorar a vida pública e privada, ao mesmo tempo em que implicam riscos substanciais. A nova ordem levanta desafios éticos sobre os quais avançamos a passos lentos, enquanto seus potenciais mercadológicos vêm sendo explorados a toque de caixa. Neste contexto, prevalece o modelo batizado de “winners take all”, no qual as gigantes tecnológicas não apenas dominam o mercado, mas eliminam as possibilidades de competição. Se este processo não for revertido, as corporações moldarão em breve as necessidades e desejos de consumo dos trabalhadores.

A crise de 2008, cujas reverberações se fazem sentir até agora, foi catalisadora das insatisfações. Na Europa, o crescimento da extrema direita é baseado na promessa da volta a um passado mítico. Ao localizar no estrangeiro a culpa da decadência, seja na figura dos imigrantes, seja nas instituições multilaterais, ela consegue ganhar base social nos antigos cinturões industriais. Nos EUA, Trump vence a eleição melhorando significativamente seu desempenho nos velhos estados industriais, tradicional bastião Democrata. Na Inglaterra, o Brexit vence o plebiscito manipulando também a ideia abstrata de volta a um passado glorioso que estaria sendo destruído pelos imigrantes e pela União Europeia.

Os desdobramentos, até o momento, da crise econômica sugerem que ainda estamos longe de sua superação. Se no século XX, crises foram seguidas pela expansão de direitos civis e ganhos econômicos, desde 2008 assistimos a um processo veloz de desmanche de redes de proteção social. As novas gerações que ingressam no mercado de trabalho são contratadas em condições que não lhes dão acesso a direitos trabalhistas já conquistados. A hipótese de uma futura recuperação econômica que seja revertida em empregos é improvável, já que uma parcela considerável destes deve ser substituída por máquinas e mecanismos de inteligência artificial. É previsto que as novas ocupações a serem criadas sejam numericamente inferiores aos postos de trabalho destituídos e que elas exijam qualificações ainda inexistentes.

O impacto da reestruturação produtiva se estende ao setor de serviços. Nele, a automação possibilita eliminar milhões de empregos através da terceirização do trabalho para os usuários, agora de forma não remunerada. Movimentações bancárias feitas em aplicativo de celular eliminam milhares de empregos e transferem para os correntistas o trabalho mais simplificado. O ensino à distância reduz a demanda por professores, plataformas online de vendas eliminam gradualmente o comércio de rua, serviços médicos passam a ser automatizados e disponibilizados em aplicativos. É este o cenário que temos pela frente. Mesmo o ícone deste processo, o Uber, na forma como existe hoje também tem seus dias contados, uma vez que deve ser substituído por carros sem motorista.

Do ponto de vista histórico, a novidade neste processo é a velocidade crescente das transformações – e isto faz toda a diferença. Trabalho formal é extinto em massa e milhões de trabalhadores caem na informalidade, no empreendedorismo do desespero, o que produz também consequências políticas. Os aparatos construídos pela esquerda a partir da Revolução Industrial, em particular os sindicatos, perdem capacidade de diálogo com este enorme contingente das classes trabalhadoras.

A “flexibilização” das relações de trabalho, o enfraquecimento das organizações sindicais e as novas tecnologias digitais têm produzido novas formas de ação coletivas descentralizadas. A exemplo da greve dos caminhoneiros ocorrida em 2018, novas formas de organização são marcadas por horizontalidade e ambiguidades, desafiando assim as hierarquias da luta política tradicional. Enquanto na sociedade industrial operários se concentravam nas fábricas numa lógica que favorecia a solidariedade, a sociedade digital estimula a contratação personalizada dos serviços, produzindo, por consequência, o isolamento dos trabalhadores e uma força de trabalho marcada pela heterogeneidade.

A característica autônoma e individual do trabalho precário, a ausência de vínculos coletivos e de compartilhamento dos mesmos espaços dificultam a formação da consciência de classe, assim como as formas de inserção no processo produtivo cada vez mais variadas e o acesso à renda cada vez mais diferenciado. O sentido de pertencimento a grupos sociais, no entanto, continua presente. No vácuo dos aparatos organizados pela lógica de classe, crescem as igrejas evangélicas e nacionalismo, mas também crescem os movimentos feministas, negros, de defesa de direitos dos povos indígenas e da população LGBTQ+.

O que está em disputa, hoje, é a apropriação dos enormes ganhos de produtividade gerados pela tecnologia. Estes ganhos de produtividade têm sido apropriados de forma extremamente desigual, concentrando renda no topo e pauperizando setores médios. Este é o cenário de radicalização do conflito. O espaço para os arranjos negociados entre a direita liberal e a social democracia terminou. A ascensão de uma extrema direita neofascista é um fato. A constituição de uma esquerda capaz de disputar o precariado e se constituir em alternativa de poder é uma possibilidade.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
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