Itália e o Fascismo

No próximo final de semana, um domingo antes de nós, os italianos irão às urnas escolher um novo governo. Quem lidera todas as pesquisas de intenção de voto é um partido chamado Fratelli d’Italia (25%), ao qual a neta do Mussolini é filiada e que tem como principal proposta fazer um bloqueio naval no Mediterrâneo para evitar a imigração oriunda do Norte da África. Vale lembrar que o sistema político por lá é parlamentarista, o que significa que a provável nova primeira-ministra (Giorgia Meloni) será indicada pela coligação majoritária, formada por uma aliança entre este partido – abertamente neofacista – e outros como a Lega, de Matteo Salvini, até outro dia considerado de “extrema direita” e atualmente visto como “moderado” quando comparado à Meloni (e que tem 13% dos votos); ou o Forza Itália, do Silvio Berlusconi, ex-primeiro ministro e notório mafioso neoliberal (com outros 9%). Ou seja, a “nova ultradireita” se uniu à direita tradicional e hoje tem 47% dos votos totais, contra 29% do Partido Democrático (PD), o mais popular entre os “progressistas” e que foi incapaz de fazer qualquer aliança. Benito Mussolini sorri no inferno.

Politicamente, a Itália é um desastre: nos 76 anos de República, já foram 48 primeiros-ministros (média de 14 meses por mandato). Esta eleição, por exemplo, estava prevista para ocorrer apenas em 2023, mas foi antecipada pela renúncia de Mário Draghi – um banqueiro e tecnocrata do Banco Mundial que tocou um governo com apoio de todos os partidos do Parlamento, da esquerda à direita (com exceção do Fratelli d’Italia, o que ajuda a explicar seu sucesso). Draghi havia assumido no lugar de Giuseppe Conte, que também renunciara ao cargo depois de ser eleito na esteira da popularidade do Movimento 5 Stelle, partido populista mais votado nas últimas eleições de 2018 (30%) e comandado por um comediante “politicamente incorreto” (Bepe Grillo) que se diz “nem de esquerda, nem de direita, mas contra a roubalheira e os privilégios dos políticos”. O 5 Stelle, que hoje perdeu quase todo seu prestígio, primeiro governou com a Lega de Salvini, depois com o PD e, por último, com os dois juntos! Essa indefinição programática e ideológica certamente contribuiu para o declínio do partido e para a ascensão do neofascismo. Mas nada disso é exatamente uma novidade naquele país, como disse “il Duce” nos anos 1940: “eu não inventei o fascismo, apenas extraí do coração dos italianos”.

A população italiana é uma das mais reacionárias da Europa: 63% acham negativo para o país receber imigrantes (a média europeia é de 52%); 66% dos jovens entre 16 e 25 anos consideram o regime fascista “uma ditadura em parte condenável, mas que também trouxe benefícios” – um dado estarrecedor! Há uma leitura de senso comum entre os italianos de que o Mussolini fez um ótimo governo antes de se aliar a Hitler e aos nazistas (é esta, por exemplo, a posição da própria Giorgia Meloni). Essa condescendência com o fascismo produziu verdadeiras aberrações, como a eleição de Roberto Fiore para o Parlamento Europeu em 2008, um terrorista autodeclarado fascista que fugiu do país nos anos 1960 para viver foragido na Inglaterra por décadas. Fiore é fundador do Força Nova, um partido pequeno que irá compor essa coligação de direita que deve vencer a eleição. Em 9 de outubro do ano passado, ele e o seu partido convocaram uma manifestação contra a obrigatoriedade da vacina, reunindo uma camarilha de hooligans e homofóbicos na Piazza del Popolo, em Roma, em um ato que terminou com a invasão e a destruição da sede da Confederação Geral Italiana do Trabalho (CGIL), o principal sindicato do país.

O nível do debate público na Itália está tão baixo que o principal assunto na última semana foi…. o desenho da Peppa Pig! Tudo começou quando um deputado do Fratelli d’Itália fez um tweet cobrando que a RAI retirasse o desenho do ar, depois da exibição de um episódio em que um personagem tinha duas mães. Meloni, que se diz “a inimiga número 1 da ideologia de gênero”, endossou publicamente as palavras de seu colega, forçando todos os demais candidatos a se posicionarem sobre o tema. Método diversionista que nós brasileiros conhecemos bem, não é mesmo? As coincidências não param por aí, inclusive: a principal força política de oposição, “Irmãos da Itália” hoje é o movimento feminista, que tem organizado manifestações similares ao “Ele, não” por lá (com a fundamental diferença de que, no caso deles, a inimiga também é uma mulher).

Se, por um lado, o feminismo é o movimento que organiza a oposição ao futuro governo italiano, por outro é a própria Meloni quem aposta no fato de poder se tornar a primeira primeira-ministra mulher daquele país, em quase 80 anos de República. Ela tem apelado fortemente à esse discurso nas últimas semanas, na tentativa de reduzir sua rejeição entre as eleitoras (seu partido, inclusive, se comprometeu a respeitar legislação vigente sobre o aborto, descriminalizado e oferecido na rede pública desde 1978 – ainda que, na prática, nas regiões governadas pelo Fratelli d’Itália, como Marche, as mulheres encontram mais dificuldades para realizar um procedimento seguro, em virtude dos incentivos financeiros às organizações “pró-vida” e a promoção de campanhas que procuram dissuadir as mulheres da decisão de interromper a gravidez).

Essas eleições, portanto, impõem um instigante debate sobre as formas de atualização da barbárie fascista neste século XXI: o grupo político que governará a Itália, a começar pela própria Meloni, é uma verdadeira escumalha nostálgica do fascismo (talvez os mais explícitos adoradores da barbárie que assolou a Europa no século XX desde que Kurt Waldheim, um ex-soldado da SA que participou da ocupação nazista da Iugoslávia, se tornou presidente da Áustria nos anos 1970). Este será, portanto, um governo neofascista? Se for, será um governo neofascista com uma inédita liderança feminina. Em que essa experiência aberrante, assustadora e única pode alterar o nosso conhecimento sobre o fascismo, o neofascismo e as formas de combatê-lo?

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.

Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Fernanda Novaes
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