O oráculo da Faria Lima

As decisões sobre política econômica no Brasil seguem sendo dominadas pelas dimensões da política monetária e da política fiscal. Ocorre que, ao longo do terceiro mandato do presidente Lula, tem sobrado pouco espaço para que o governo consiga sair dos limites da caixinha de receitas da ortodoxia financista. É mais do que urgente, por exemplo, romper com o ideário neoliberal e implementar as bases para tornar realidade um programa nacional de desenvolvimento social e econômico, com preocupação de sustentabilidade e de redução das profundas desigualdades que nos caracterizam. Mas a política fiscal fica sequestrada no Ministério da Fazenda por conta da obsessão de Fernando Haddad com as metas de austeridade e com a obediência cega aos ditames do Novo Arcabouço Fiscal – instrumento portador de tragédia que ele mesmo elaborou. Já a política monetária segue prisioneira desde o início de 2023, com a diretoria do Banco Central (BC) indicada por Paulo Guedes e Jair Bolsonaro.

Não bastasse o nosso País continuar ocupando o vergonhoso segundo lugar no campeonato mundial de taxas reais de juros, o financismo ainda não se dá por satisfeito e segue na luta por novos aumentos na Selic. O cenário montado é o da 265ª reunião do Comitê de Política Monetária (Copom) marcada para ocorrer hoje, dia 17 e amanhã, 18 de setembro. De acordo com o script preparado a cada 45 dias, no final da tarde de amanhã, a assessoria de imprensa do órgão deverá divulgar o novo patamar da taxa oficial de juros, tal como deliberado pelo colegiado. Os nove integrantes da diretoria do BC trocam de boné e se assumem na condição de membros do comitê. A dinâmica envolve dois longos dias tomados pela discussão a respeito de temas amplos, como a economia internacional, o cenário econômico local e as tais das expectativas dos “agentes econômicos”.

Alguns dos elementos que terminam por determinar a decisão daquele coletivo encontram-se na pesquisa semanal realizada pelo próprio BC junto à nata do sistema financeiro. Trata-se da Pesquisa Focus, cujo teor é divulgado religiosamente pelas manhãs de cada segunda-feira. A coleta de opiniões pretende ser o reflexo daquilo que a grande imprensa chama pomposa e irresponsavelmente de “a opinião do mercado” [sic]. Essa tem sido a antiga e persistente tentativa de naturalizar e banalizar os interesses do financismo, como se esse agente intangível pudesse até mesmo ser humanizado: o mercado pensa, o mercado reage, o mercado propõe, o mercado pressiona, o mercado ameaça. Como dizia um saudoso amigo, até nome de gente ele parece ter: Ohmer Cado.

BC ouve apenas 171 banqueiros em um país de 217 milhões de pessoas

Mas o fato real é que o BC ouve apenas 171 indivíduos, esta mui seleta comunidade que recebe o convite quase sigiloso para responder às questões elencadas na pesquisa. Compõem a chamada “crème de la crème” da nata financista. São todos donos, diretores ou altos dirigentes de bancos, gestoras de investimentos, consultorias de negócios e instituições financeiras assemelhadas. Não participa da ausculta nenhum representante de setores da economia real, a exemplo de indústria, agricultura, serviços ou comércio. Por outro lado, tampouco são chamados a opinar professores, pesquisadores, assessores do movimento sindical, entidades da sociedade civil ou de associações do movimento popular. Finalmente, não são coletadas as avaliações de economistas e analistas que pensem de forma diversa daquela ditada pelo establishment neoliberal conservador. Em resumo, trata-se de uma pesquisa altamente viesada, praticamente uma conversa entre amigos durante o fim de semana, com vistas a preparar as ações de lucros especulativos a serem auferidos a partir de cada nova segunda-feira.

A pesquisa indaga opiniões e chutes a respeito da tendência futura de um conjunto de variáveis do universo da macroeconomia. É o caso, por exemplo, do comportamento das atividades econômicas (crescimento do PIB), da evolução dos preços (medição da inflação por meio do IPCA), do desempenho da balança comercial ou também da evolução do resultado fiscal primário. Para buscar respostas para cada uma destas indicações, as equipes de analistas das empresas do financismo mantêm seus modelos econométricos sempre rodando, sendo alimentados com as estatísticas oficiais e com outras informações da economia. A verdade é que quase nunca o comportamento futuro das variáveis é um simples reflexo do ocorrido no passado e a economia, como nunca nos cansamos de reafirmar, não é uma ciência exata.

Oráculo de Delfos na Faria Lima – o deus do financismo comanda

Mas de qualquer maneira, por mais críticas que possamos fazer aos modelos utilizados para realizar tais projeções, estas dependem de uma leitura do que acontece com a dinâmica da realidade da economia, com a vida das pessoas e com o dia a dia das empresas. Assim é que se faz um prognóstico do que poderia ocorrer com o PIB, com a inflação ou com o resultado entre exportações e importações. No entanto, a pesquisa também faz uma pergunta essencial, mas cuja natureza é completamente distinta das demais. A Focus indaga aos representantes da nata do financismo o que eles esperam da Selic para o futuro. Ora, a resposta para essa variável não depende absolutamente de nenhum modelo econométrico. Tal resposta não surge miraculosamente como resultado de nenhum modelo de cálculo complexo. Trata-se apenas e tão somente de uma opinião que busca imaginar como o Copom decidirá a esse respeito ao longo das próximas reuniões. Afinal, tudo se explica pelo fato de que o patamar da taxa oficial de juros é uma decisão política do Copom e nada mais. Achismo em seu estado bruto e natural, simples assim.

Isso significa que, para esta variável em especial, o financismo mais se assemelha a um oráculo da Faria Lima. Eles decidem de forma antecipada qual deveria ser a decisão do Copom e fazem um jogo de pressão pesadíssimo para fazer valer a sua opinião. Para tanto, contam com o apoio e suporte dos “especialistas” a seu soldo nos grandes meios de comunicação. Esse pessoal todo é que se encarrega de criar o clima de profecia autorrealizada, ao informar à opinião pública que “o mercado exige” a elevação, manutenção ou queda da Selic para o próximo encontro do colegiado. O professor Luiz Gonzaga Belluzo expressou bem a situação em uma entrevista recente:

  • (…) P: O senhor acredita que o governo tem de se submeter ou reagir a essa voz do mercado?
  • R: Esse é um ponto importante. É claro que tem de reagir. Mas o poder do governo hoje é muito menor do que o poder dos mercados financeiros. E tudo isso é uma questão de poder. Todo mundo em economia acha que está falando uma coisa técnica, científica. É mentira. A economia é política. Tanto que a ciência era chamada de economia política. Uma coisa é inseparável da outra. Mas o fato é que, hoje, o governo está cercado. O mercado tem mais poder. (…) [GN]

A banca manda e o Copom diz amém

No momento atual, as novidades surgiram com a reafirmação pelo oráculo de que a taxa deverá subir 0,75% até o final do ano. A Pesquisa Focus informa que o “mercado” prevê que a Selic esteja no patamar de 11,25% ao ano em dezembro de 2024. Ora, como sabemos que haverá três encontros do Copom até tal data, a resposta sugere que em cada um deles haverá uma elevação de 0,25% a partir dos 10,50% atualmente vigentes. Assim, de nada valem os argumentos “racionais” demonstrando que a inflação no Brasil está em baixa e que o próprio FED norte-americano deverá reduzir sua taxa de juros. Afinal, estes são os principais elementos da narrativa pró-aprofundamento do arrocho monetário.

Segundo o modelito da ortodoxia neoliberal, se os EUA aumentam a taxa de juros deles, nós também devemos aumentar a nossa para manter a atratividade dos recursos especulativos na seara internacional. Caso contrário, haveria o que eles chamam de “fuga de capitais”, uma espécie de antessala da catástrofe apocalíptica. No entanto, o oportunismo do argumento desse pessoal é tão flagrante, que mesmo havendo uma tendência à queda de juros na reunião do banco central de lá, eles não aceitam que se deva reduzir por aqui também. O mesmo vale para a inflação em queda. Eles mesmos já anunciam a possibilidade de retomada do crescimento dos preços por conta da crise ambiental e das queimadas e não aceitam de forma alguma que a Selic fique nem mesmo estacionada.

Finalmente, sequer mencionam a obrigação, prevista na própria lei em que aprovaram a quase independência do BC, de o órgão se preocupar também com o nível de emprego e das atividades econômicas de uma forma geral.

  • (…) “Art. 1º O Banco Central do Brasil tem por objetivo fundamental assegurar a estabilidade de preços.
  • Parágrafo único. Sem prejuízo de seu objetivo fundamental, o Banco Central do Brasil também tem por objetivos zelar pela estabilidade e pela eficiência do sistema financeiro, suavizar as flutuações do nível de atividade econômica e fomentar o pleno emprego.” (…) [GN]

Assim, por mais que estejam ocorrendo melhoras recentes nos indicadores de desemprego, o fato é que estamos ainda muito distantes da utilização plena de nossa capacidade produtiva e econômica. Esta é apenas mais uma das inúmeras razões para que seja promovida uma redução substantiva no patamar da Selic e não ficarmos apenas nessa superficialidade de um debate cosmético, no qual parece muito relevante debater se a taxa deve ser de mais ou menos 0,25% ou 0,50%.

Ora, parece evidente que não deveria caber ao órgão encarregado de implementar a política monetária demandar aos agentes que mais se beneficiam dos exageros de uma Selic nas alturas o que eles pensam a respeito do patamar da mesma no futuro. Trata-se de um modelo de decisão autolimitado e amarrado na defesa dos interesses do capital da banca. Uma loucura! E infelizmente os sinais emitidos pelo Palácio do Planalto até o momento não apontam para mudanças substantivas neste quadro.

Lula precisa assumir o comando da economia

O indicado para ocupar a Presidência do BC é um jovem economista, com passagem em postos de comando em instituições financeiras privadas. Gabriel Galípolo tem apenas 42 anos e uma carreira promissora no interior do financismo. Caso seja mesmo efetivado no cargo, contará com um mandato fixo de quatro anos pela frente. Desde a sua nomeação para a diretoria de política monetária no ano passado, o ex-presidente do Banco Fator tem demonstrado maior preocupação em se alinhar a Roberto Campos Neto e aos desejos difusos da banca privada do que efetivamente colaborar para uma alteração de peso nos rumos da economia política do Brasil.

Lula escolheu dois de seus principais colaboradores na economia – Haddad e Galípolo. Ambos se rendem a consultar o oráculo da Faria Lima para obter as respostas que direcionam os rumos da política econômica. O presidente da República sabia muito bem o que a duplinha pensa a respeito do Brasil hoje e no futuro. Quando não houver mais um bolsonarista à frente do BC para ele poder criticar, a quem Lula vai recorrer? Vai apelar para quais deuses no intuito de corrigir os rumos da austeridade e do neoliberalismo?

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.

Ilustração: Mihai Cauli
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