Com a sutileza própria dos valentões do velho oeste o comandante da tropa finalmente decidiu cruzar o Atlântico para dar as caras no Velho Mundo. E que Versalhes que nada. Com a presença do chefe, a reunião foi onde deveria mesmo ser, no Forte Apache ou, modernamente, na sede da OTAN. Os coadjuvantes já haviam atuado, os servos desempenhado seu papel com toda a pose de protagonistas (que patético, que lamentável papel este destinado à social-democracia europeia…). Para isso o presidente Joe Biden aterrissou em Bruxelas semana passada. Era hora de dar uma volta a mais no parafuso. Em algum momento não muito distante e o Império terá realizado, assim crê e para isso atua com tenacidade, o que desde o fim da União Soviética é o seu mais ansiado sonho de consumo: a derrota definitiva do ex-adversário de Guerra Fria com a instalação no Kremlin de um governo dócil ao ocidente (um Alexei Navalny ou algum congênere).
Enquanto isso, lá está ele, o Império, na atividade que com mais destreza e voluptuosidade se entrega, para o bem da sua gente (e entenda-se sua gente no sentido o mais estreito possível) e da sua economia: a guerra. A guerra, desde que bem distante do seu próprio território, na terra dos outros e, mais, com a fenomenal máquina de propaganda que maneja com excelência e despudor únicos atuando para convencer o resto do planeta de que é ele o grande pacificador e o outro, sempre o outro, o enfurecido bárbaro, o invasor, o huno (servem também se forem eslavos ou amarelos ou muçulmanos, serve na realidade qualquer rótulo – sua azeitada máquina de propaganda é hábil o suficiente para vender que produto for e convencer as mais variadas clientelas).
A desmemória do grande público e a subserviência da free press faz o resto. Por isso mesmo, não custa recordar que esse pacificador é um farsante que está e sempre esteve invadindo e matando em terras alheias. Faz tempo.
Memória e libelo
Uma matéria publicada no El País aqui da Espanha, dois ou três anos atrás, informava que no “dia 4 de outubro de 2017 quatro boinas verdes caíram numa emboscada em Níger, perto da fronteira com o Mali, quando saíam de uma aldeia chamada Tongo Tongo na qual haviam parado para descansar…”. Ainda segundo o jornal, a notícia da morte desses quatro soldados provocou alarido nos Estados Unidos e uma das razões para isto foi que “ninguém, nem no Congresso nem na opinião pública, sabia direito o que aqueles homens estavam fazendo ali. ‘Não tinha a menor ideia de que havia 1.000 soldados em Niger’, disse o senador Republicano Lindsey Grahan, um dos falcões de Washington”.
A lista se arrasta para muito atrás no tempo, desde que proclamando-se o grande herói da resistência ao nazismo o Império se autoproclamou (na surdina dos gabinetes) como o gestor por direito das coisas do mundo e da própria história.
Em consequência, imediatamente passou à ação (abaixo alguns dos países militarmente invadidos e/ou ocupados pelos Estados Unidos a partir de 1950).
- Mal havia baixado a poeira atômica das bombas lançadas sobre a população de Hiroshima e Nagasaki, o Império inaugurou sua hegemonia planetária intervindo na Coreia. No último ano do conflito, 1953, havia mais de 300 mil estadunidenses na Coreia do Sul. Pouco mais que 10% desses soldados, i.e., 36 mil foram mortos no decorrer daqueles quase três anos, para sabe-se lá quantos nativos.
- Menos de dois anos depois, em fevereiro de 1955, chegaram os primeiros assessores militares para o Vietnã, logo após a expulsão dos franceses, no começo do ano anterior. Uma década adiante, em 1964, já havia 21 mil militares americanos no Vietnã. Em 1975, foram finalmente batidos e mandados de volta para casa. De acordo com um levantamento feito pelo site da BBC, “mais de 2,5 milhões de americanos serviram na guerra; em 1968 havia 536 mil deles combatendo”, e 58 mil morreram durante as duas décadas que durou a invasão e ocupação. O saldo deixado entre os vietnamitas é significativamente mais elevado: pelo menos um milhão e cem mil mortos.
- Passados apenas oito anos, em 1983, sob o pretexto de proteger estudantes de medicina americanos (sic), o então presidente dos EUA Ronald Reagan ordenou a invasão da minúscula ilha caribenha de Granada. Mas que diabos de importância tem isso? Era apenas uma ilhota.
- Em meados da década de 1980, os Estados Unidos e o Panamá entraram em conflito pelos termos da transferência do controle do Canal do Panamá. Em dezembro de 1989, o presidente George Bush (o pai) ordenou a operação militar de destituição do então presidente do país, o general Noriega, capturado e levado preso para os Estados Unidos acusado de tráfico de drogas etc.
- No dia 7 de outubro de 2001, menos de um mês depois dos ataques terroristas de 11 de setembro, as FFAA dos Estados Unidos invadiram o Afeganistão. Duas décadas depois, os militares dos EUA ainda estavam em processo de retirada do Afeganistão. Duas décadas ocupando o país dos outros.
- Iraque, 2003. O Império e uns tantos aliados, sem autorização da ONU (o que, afinal, não faz muita diferença), ocuparam o país. Num grandioso show midiático os Estados Unidos forneceram evidências comprovadamente falsas para convencer a plateia mundial de que o Iraque estava desenvolvendo armas de destruição em massa. A operação Iraqi Freedom foi lançada em março de 2003. No início de maio, o presidente George W. Bush (o filho) anunciou a conclusão da fase ativa das hostilidades. Entre os feitos da invasão está a patética captura do ditador Saddam Hussein. Em 5 de novembro de 2006, após um julgamento montado a toque de caixa, o tribunal iraquiano condenou Saddam à pena de morte por enforcamento por crimes contra a humanidade (a palavra de ordem lançada agora pelo presidente Biden contra Putin foi, literalmente, “criminoso de guerra” – qualquer semelhança, vocês sabem, não será mera coincidência e serve naturalmente ao mesmo tipo de estratégia e de campanha publicitária). Antes do final do ano, um tribunal de apelação do Iraque confirmou a sentença contra o ex-ditador. Saddam foi entregue aos executores iraquianos pelas forças americanas que o custodiavam alguns minutos antes de seu enforcamento, no início do dia 30 de dezembro.
- Líbia, 2011. Em fevereiro, o conflito armado entre forças do governo de Muammar Kadafi e grupos da oposição financiados e estimulados pela CIA tomou conta da Líbia. O Conselho de Segurança da ONU adotou uma resolução para impor sanções ao país. Na sequência, liderados pelos EUA, os sócios da OTAN iniciaram uma ofensiva de bombardeios contra o território líbio. Oficialmente, a guerra terminou com o linchamento de Kadafi pelas mãos de uma turba ensandecida, em outubro de 2011. Não houve necessidade de acusações de crime contra a humanidade ou de vastas campanhas publicitárias.
Essa é uma lista aleatória e provavelmente muito incompleta. Mas você leitor muito provavelmente poderá perdoar sua incompletude. Pois se não, peço sua consideração para o que informou a matéria do El País citada acima: se até um senador republicano ligado ao inimaginavelmente poderoso lobby da indústria bélica pode, em certo momento, desconhecer um ou outro dos imbróglios militares nos quais seu país está metido, o que dizer de um simples leitor de jornais?
De todo modo, a conclusão soa bastante simples: a pax americana é na realidade o estado de guerra permanente contra os outros (aqueles que o Império, suas empresas e seus interesses estratégicos designam como inimigos ou rivais) e na terra dos outros – convencendo o planeta, ou pelo menos boa parte dele, de que é Ele o pacificador, e o inimigo, o invasor bárbaro.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli
Leia também “O invisível sarcasmo na guerra da Ucrânia“, do mesmo autor.