Muito pareceu estranho nos resultados das eleições de 2 de outubro: não aconteceu a vitória de Lula no primeiro turno e a diferença que separa sua primeira colocação na disputa com Bolsonaro, de cinco milhões de votos, soa pequena ao reiniciar a campanha para um segundo turno. Também o número de senadores e parlamentares eleitos sob Bolsonaro surpreendeu. São Paulo prestigiou um carioca num expressivo primeiro lugar no primeiro turno…

Os votos obtidos por Bolsonaro foram, entretanto, em número inferior aos que obteve em 2018, mas foram suficientes para lhe dar fôlego na retomada da campanha.

Recomeça a campanha em tom de batalha entre dois campos.

Notas pessoais sobre a atualidade e o futuro

Há vitórias a serem assinaladas: o país afirma-se aberto à Democracia Constitucional que somos; houve defesa do Estado Democrático de Direito, sem tergiversações, nem voluntarismo ou autoritarismo. O Tribunal Superior Eleitoral impôs ordem e o resultado foi um pleito tranquilo, sem sobressaltos, apuração rápida e eficiente. Essa já é marca registrada do Brasil no mundo.

Nem Bolsonaro nem Lula, entretanto, serão o presidente ideal, mas a vitória possível de Lula pode representar o repúdio a um novo integrismo autoritário e populista, sob lema ” Deus, Pátria e Família”, criação de Mussolini, na Itália.

O país é maior do que supõem extremistas ultraconservadores e tem mais méritos do que o populismo patriarcal, ditatorial, que nos vem acontecendo nos últimos quatro anos com a distorção política da contestação às instituições, técnica adotada pelo MSI italiano, precedendo a guerra. O país sentiu, no prestígio do pleito ordenado e tranquilo, com excelente comparecimento, a necessidade de retomar a dignidade democrática.

Nova era

Sem ignorar a tradição de tentar falar em nome do “povo”, conceito rousseauniano cômodo e talvez em vias de ultrapassagem, o que parece transparecer na expressão eleitoral é que começamos a afirmar o prestígio do cidadão individual, dos indivíduos singulares (uti singoli) como donos de seus destinos, sujeitos a regras pré-estabelecidas, a serem cumpridas precisamente, tal como foram consagradas na Constituição de 1988.

A política é produto de todos os indivíduos, homens, mulheres, gêneros diversos, negros, brancos, indígenas, pertencentes à forma de associação legítima de que decidam participar individualmente. Suas regras de convivência existem sob Lei de aplicação geral obrigatória e será um erro descumprir tais regras, onde sobreleva o direito de cada cidadão (indivíduos) de viver e se expressar segundo suas necessidades de consciência ou de situação física e definição de preferências, sem discriminações.

Vimos isso com alguma clareza nas pesquisas pré-eleitorais, úteis instrumentos de análise de cunho sociológico, e nas apurações: uma forma nova de liberalismo individual afirma-se progressivamente em nossa sociedade. Predomínio do cidadão sobre o “povo”, princípio da definição dos Direitos Humanos.

Essa é a definição de Democracia moderna, em que os cidadãos se definem em Nação e Estado, sob uma Lei Geral que garanta o equilíbrio do conjunto, mas não ignora as exigências da educação e de saúde física e mental e procura eliminar as distinções discriminatórias e preconceituosas. Essa é a ideia democrática que se busca praticar, superada a forma rousseauniana da definição de ”Povo”, sobre o indivíduo.

E todos os indivíduos – cidadãos – têm o direito de participar das decisões de interesse de todos. Daí o pleito eleitoral democrático a ser respeitado em seus resultados. Daí a partição ideativa dos poderes independentes e harmônicos entre si, cada qual com a definição precisa de seu alcance teórico e prático, instituições que não colidem, mas podem tangenciar-se.

Não é esse ideal que verificamos sob uma autoridade (ninguém é mito), um autocrata, ditador, militar ou não.

No contexto eleitoral que nos definirá um caminho para o futuro, Lula não será o ideal, mas é um “ser humano”, que poderá servir na transição de aperfeiçoamento que o país precisa e talvez exija. Lula, um homem de 77 anos, demonstra o bom senso de procurar o entendimento para o centro e tem percebido as idiossincrasias do PT, um partido de concepções antiquadas, onde se misturam também autocratas, que Lula, por sua história de negociador de extração operária, não parece ser.

Nessa afirmação das individualidades, não há “comunismo” possível, fora do contexto histórico ultrapassado da luta marxista de classes.

Da nossa realidade, cabe, entretanto, um empenho essencial para liquidar a pobreza (são indivíduos, pessoas físicas como nós) que é discriminatória por definição. Ser pobre, preto, mulher, homem, sem acesso à educação e ao emprego ou renda resulta num país odioso, de discriminações.

Essa é uma larga discussão, que necessariamente se liga a áreas amplas de atuação coletiva, como é o ambiente das florestas, dos rios, das cidades, do campo e dos silvícolas. Individualidades em afirmação, cidadãos, e premências do conjunto (fome, pobreza, Estado, iniciativa privada), tudo demonstra a urgência de uma grande reforma estrutural em nosso país, num período de transição que recomece a construir o Brasil, sob uma Democracia social-liberal.

Não será Lula a fazê-lo, pois lhe falta o tempo vital, o conhecimento e a liberdade de ação, diante de um partido (PT) antiquado e tampouco – de fato – renovador. Falta-lhe, ainda, a associação de todas as partes e interesses – humanos, individuais, empresariais. Jamais, muito menos, o fará Bolsonaro, um autocrata ignorante.

O conservadorismo paralisante e retrógrado tampouco serve ao país, pois sequer tem sabido dialogar para beneficiar-se.

Cabe-nos doravante iniciar o empenho político da união, para benefício de todos, respeitadas as distinções entre o que se convencionou chamar de esquerda e direita, para encontrar os pontos de convergência possíveis, talvez ao centro. Estado e iniciativa privada, indivíduos e organizações sociais, completando-se nas suas competências e capacidades para atender a ideia do desenvolvimento sustentável.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.

Revisão: Celia Bartoni

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