Em fevereiro deste ano, o governo Bolsonaro privatizou a Refinaria Landulpho Alves (RLAM), situada na Região Metropolitana de Salvador, confirmando a atualidade do movimento de transnacionalização de capitais estatais, conforme revelada no artigo de 31.01.2021 do Terapia Política. Isso porque a empresa de investimentos Mubadala Capital, que comprou a primeira refinaria constitutiva do sistema estatal de exploração de petróleo brasileiro desde 1950, pertence ao fundo soberano dos Emirados Árabes Unidos. Este fundo é um dos maiores do mundo e governa um conjunto de atividades em diversos setores econômicos no mundo: agronegócio, mineração, petróleo e petroquímica, aeroespacial, semicondutores, saúde e farmacêutica, serviços de utilidade pública, tecnologia de comunicação e informação, entre outros.
Embora exista desde a década de 1930, o fundo soberano de responsabilidade estatal somente passou a atuar como importante elemento de intervenção governamental na política macroeconômica nacional (monetária, cambial, fiscal e produtiva) a partir de 1953, com a criação do Kuwait Investment Authority (KIA). Na década de 1970, com o desmonte do acordo de Bretton Woods, que havia regulado o funcionamento do capitalismo organizado desde o fim da Segunda Guerra Mundial, e a desregulamentação gerada pela globalização neoliberal na década de 1980, os fundos soberanos cresceram de importância.
Em grande medida, isso terminou ocorrendo devido aos expressivos aumentos nos preços das commodities (minério de ferro, aço, petróleo e alimentos) no comércio internacional. Diante dos significativos superávits comerciais e acúmulo nas reservas cambiais, impulsionando a chamada doença holandesa (valorização da moeda nacional com impulso a importar e o desestímulo à produção interna e à exportação), mais países produtores de commodities constituíram os seus fundos de riqueza soberana.
Aproximadamente a metade dos quase 60 fundos soberanos existentes atualmente em mais de 40 países foram estabelecidos diante da instabilidade e das crises financeiras provocadas pela globalização neoliberal, sobretudo a partir da década de 1990. Com o total de recursos disponíveis nos fundos soberanos equivalendo a mais da metade das reservas cambiais do mundo, essa modalidade de investimento estatal foi invertendo a lógica privada da globalização capitalista comandada por grandes corporações transnacionais privadas.
Neste início da terceira década do século 21, o capitalismo globalizado vem sofrendo significativa interferência estatal por meio de consideráveis participações em títulos públicos e moedas de outros países, bem como nas empresas estrangeiras privadas e públicas que são privatizadas com objetivos nacionais estratégicos. Essa tendência mundial na proliferação dos fundos soberanos, especialmente nos países ricos em recursos naturais, revela como a transnacionalização do capital estatal terminou sendo incorporada ao processo de financeirização da natureza.
Ademais, expressa também o papel crescentemente decisivo e positivo do Estado na condução das economias nacionais. Do lado fiscal e monetário, contribui para as ações anticíclicas no controle da demanda agregada através do financiamento das despesas públicas, enquanto que do lado cambial, permite atuar sobre os riscos de flutuações na taxa de câmbio, o que minora a pressão por valorização da moeda nacional.
Assim, os países produtores e exportadores de commodities têm conseguido diversificar as intervenções estatais em várias atividades econômicas, por meio da aquisição de empresas tanto privadas como públicas em processo de privatização no mundo. Contraditoriamente, a privatização do setor produtivo deixou de significar a expansão do setor privado conforme se verificava até os anos 1990.
Desde o início do século 21, a transnacionalização dos capitais estatais operados por fundos soberanos de governos nacionais significa a presença de um processo de estatização, em plena globalização neoliberal. Foi nesse sentido que o governo brasileiro terminou implementando seu próprio fundo soberano durante a crise financeira global de 2008.
Contudo, tudo isso passou a ser revertido no Brasil desde o golpe de 2016. Com o sugestivo nome de “Uma ponte para o futuro”, os pilares do neoliberalismo foram agressivamente retomados, o que levou o governo Bolsonaro a extinguir, em 2019, o próprio fundo soberano do país.
Assim, a continuidade do neoliberalismo tem se expressado através da fuga de capitais financeiros e do abandono das empresas multinacionais. Ao mesmo tempo, o desmonte do setor produtivo estatal, possibilitado pelas privatizações, tem sido dominado pela transnacionalização de capitais estatais forâneos, que desnacionalizam a propriedade da unidade produtiva local e deslocam o centro de decisão empresarial para fora do Brasil, reduzindo a própria soberania nacional.
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Sobre o debate do tema da privatização estatizante, leia o artigo “A trasnacionalização dos capitais estatais“.