O povo no poder (e…)
I
O primeiro problema do título desse artigo é a palavra povo. Qual o significado dessa palavra? A gramática informa que se trata de um substantivo masculino. O dicionário diz que é tanto o “conjunto de pessoas que falam a mesma língua, (…) vivem em comunidade num determinado território, nação, sociedade”, quanto o conjunto “de pessoas que pertencem à classe mais pobre, plebe”, o que é coisa bem distinta. No de sinônimos, encontramos: “Nação: gente, habitantes, massa, pessoas, população, público, sociedade” e também “povaréu, plebe”. Mas são os antônimos de povo que ajudam a dar melhor contorno ao vocábulo: “alta-roda, aristocracia, (…) grã-finagem, nobreza, soçaite”.
II
O segundo problema exige mais. Primeiro porque o título do artigo supõe, na verdade, uma inferência ou dedução ou, ainda, interpretação talvez ligeiramente forçada da seguinte frase: “Agora a imprensa são vocês”, sendo esse vocês claramente uma referência a todos nós e, por consequência, a um dos sentidos da palavra povo. Forçada ou não, não encontro outra maneira de interpretá-la, já que não há nenhuma referência concreta a esse vocês, como logo verão, mas apenas de contexto. E também porque a frase só faz sentido como uma oposição: agora a imprensa são vocês, portanto a imprensa agora não são eles. E esse eles está claramente subentendido: é o que era até agora, o que supostamente teria ficado para trás, o que não é mais porque foi substituído. Esse eles são, portanto, os antigos donos da mídia tradicional, seus barões ou imperadores. Esse eles está sendo destituído para que seu lugar passe a ser ocupado por vocês. (Uma substituição de natureza semelhante àquela magnificamente ilustrada no filme Saltburn de Emerald Fenell, pelo menos numa de suas possíveis interpretações – ver A história de um assalto ao palácio). Mas onde, afinal, está o problema, esse suposto segundo problema do título acima? Que problema há em que os milionários donos dos meios de comunicação tradicionais cedam seu papel ao povo, ao populacho, à plebe? Claro, para eles isso seria um problemão e dificilmente largariam o osso sem antes inundarem as ruas com o sangue do povo. Noutras palavras, não aconteceria sem uma verdadeira batalha, uma sangrenta guerra civil. E, no entanto, a frase garante: a imprensa agora são vocês. O ato aparentemente já está consumado sem que tenhamos notícias de nenhuma batalha campal entre o povaréu e os barões da imprensa, os milionários (ou bilionários) e a massa ou povo. Mas de quem é a voz que está comunicando que o povo (nós, vocês) agora é a imprensa? Ou, o que é o mesmo, que o povo enfim agora é ao menos partícipe do poder? Aí surge um terceiro problema.
III
Porque, sim, há um terceiro problema nesse título, um problema daqueles bem gordos – é que ele é ao mesmo tempo uma verdade trágica e uma mentira das mais safadas. Primeiro porque o tom do comunicado é de óbvio contentamento e seu emissor, ninguém menos que O Homem Mais Rico do Mundo (vocês me desculpem se insisto tanto com o personagem, mas por aqui, desde uns dois ou três meses antes das eleições americanas ele tem sido uma figura de destaque do noticiário). Por isso, insisto se tratar de uma trágica e complicada verdade, já que não é possível negar que há por detrás desse contentamento uma vontade manifesta cuja composição é inegavelmente popular, de povo mesmo, povaréu, e também uma mentira das mais safadas. Os paradoxos se amontoam e é preciso esmiuçá-los. É uma estrepitosa mentira que Donald Trump, Elon Musk e seus camaradas representem ou queiram representar por um segundo que seja os interesses das massas de não milionários que povoam os Estados Unidos e o planeta. Eles representam, querem representar e representarão sempre estritamente os seus interesses, excluindo, sempre que possível, os de todos os demais, custe o que custar em sacrifícios para os outros habitantes do planeta, e para o próprio planeta – porque é assim que funcionam os mecanismos no mundo da hiperconcentração do capital onde nasceram e prosperaram feras selvagens como Musk e Trump. Mas é inegável também que foram capazes de fazer crer a esses milhões de não milionários que ninguém melhor que eles, os bilionários, para defender e representar suas miúdas necessidades. O dom da eficiência, aliás, lhes pertence. As máquinas de convencimento estão em suas mãos. A esperteza faz parte da sua biologia – assim como a repulsa a qualquer sombra de ética é para eles uma repulsa genética. E esses recursos intrínsecos às suas naturezas eles os estão aperfeiçoando, geração a geração.
III
Como foi ele quem primeiro lhes concedeu o mando da imprensa, agora pode roubar-lhes a voz e falar em seu nome.
- “O povo da Grã-Bretanha já está farto de um Estado policial tirânico” – O Homem Mais Rico do Mundo em sua versão libertária.
- “A voz do povo é um ótimo antídoto” – O Homem Mais Rico do Mundo em sua versão doutoral.
Quem quiser ver a matéria completa do Político, onde essas declarações aparecem, deve acessar o artigo “Elon Musk brands UK a tyrannical police state”.
Parece e provavelmente é uma muito bem pensada estratégia de comunicação, uma lógica maligna que adota os termos e a gramática do adversário, como se estivesse lhe roubando a própria alma, para exterminá-lo. Boa parte dos discursos ou das palavras de ordem da ultradireita parecem ter sido extraídos diretamente dos cartazes e faixas e das manifestações de rua da esquerda: “O povo já está farto…”, “A voz do povo…”, “Tomem a Bastilha… quer dizer, o Capitólio.” O que mais?
Antecedentes
Em meados de dezembro de 2012, um sujeito com apenas 20 anos de idade entrou numa escola primária armado com um rifle tipo AR-15 e durante 11 minutos atirou indiscriminadamente contra todos os que viu pela frente. Ao término das rajadas, 26 pessoas estavam mortas, 20 crianças entre 6 e 7 anos de idade e seis trabalhadores da escola. Era um a mais na vasta estatística de massacres cometidos nos Estados Unidos, nem o maior, nem o menor deles, nem o mais chocante, nem o menos chocante – afinal são todos repugnantes, mais ainda quando se considera a lei que dá aos cidadãos do país o direito de comprar armas de guerra como se compra picolé, apenas para contentar os fabricantes de armas e a ideologia selvagem que alimenta os alicerces do Império. Mas não é o massacre da Escola Sandy Hook o assunto desse artigo. É mais ou menos por essa época que começa a ganhar notoriedade os pregoeiros de realidades alternativas, especialmente um ainda desconhecido Steve Bannon. Mas ao contrário do que creem alguns, Bannon não é o pioneiro, embora seja muito provavelmente quem deu dimensão de Estado à profissão, abrindo caminho para os verdadeiramente grandes que agora ocupam o centro do palco. Antes deles há, por exemplo, um tal de Alex Jones, que desde 1999 já testava o receituário dos alternativos, digamos assim, quando fundou seu site de notícias Infowars. Claro que um oportunista como Jones não deixaria de aproveitar o evento que em dezembro de 2012 transtornou o país inteiro: o assassinato das crianças da Escola de Sandy Hook. E o fez da maneira a mais indecente e chamativa possível – acusando de encenação as próprias vítimas. Repetiu incansavelmente sua fórmula mágica absurda absolutamente inverossímil. O assassino não existiu, as crianças mortas tampouco, seus pais eram mentirosos representando cenas previamente ensaiadas. E durante anos seguidos, enquanto via crescer a audiência e, naturalmente, seu bolo publicitário, insistia na cínica e alucinada versão da farsa. Acreditem se quiserem, mas o fato é que a partir de certo momento um de cada quatro cidadãos americanos acreditava que o massacre de Sandy Hook havia sido mesmo uma farsa montada pelas famílias das vítimas e pelas próprias vítimas – claro, já que segundo a realidade alternativa criada e mantida pelo Infowars de Alex Jones nenhuma criança ou adulto foi morto.
Julgamento e condenação
Apenas em 2022, pouco antes que se completassem dez anos do massacre, Jones foi processado pelas famílias das crianças assassinadas em dois julgamentos separados, o primeiro em Austin, no Texas, o segundo em Waterbury, Connecticut, e condenado a pagar respectivamente 49,3 e 965 milhões de dólares em “indenizações compensatórias e punitivas”. (O documentário The Truth x Alex Jones de Dan Reed narra detalhadamente a história)
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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