Embora se tenham registrado progressos na defesa e promoção dos direitos humanos em certas áreas, em outras as melhorias foram tímidas

Pode-se dizer que o terceiro governo de Lula teve dois inícios – um antes e outro depois de sua bela e simbólica posse oficial. Com efeito, de forma inédita em nossa história política, diante da fuga do governante em fim de mandato e, por conseguinte, na falta do ritual republicano da transição para uma nova administração, o presidente eleito teve de se dedicar, no mês anterior à sua assunção ao cargo, a articulações com o Parlamento, visando à edição de Emenda Constitucional que lhe permitisse contar com os meios e recursos indispensáveis à tarefa de administrar o país, para a qual foi indicado pela maioria do eleitorado.

E, felizmente, mesmo composto na maioria por adversários, o Congresso Nacional, por suas principais lideranças e partidos – excluídos, claro, os seguidores do Boçal refugiado na Flórida – não se furtou à negociação que redundou na chamada PEC da Transição, editada no fim do ano passado. Isto significou, na prática, o começo do governo, que oficialmente assumiu no primeiro dia de 2023, na inesquecível cerimônia, carregada de simbolismo, em que representantes das maiorias e minorias perseguidas ao longo de séculos de dominação, envergaram a faixa presidencial no maior líder político de nossa história, e o acompanharam na subida da rampa do Planalto.

Já o segundo início se deu, de modo inesperado e forçado, a 8 de janeiro deste ano, com a reação institucional, por ele concebida e conduzida, contra a espantosa tentativa de golpe então praticada pela horda bolsonarista, a qual, guiada e incentivada por autoridades civis e militares, distritais e federais, invadiu e passou a destruir partes das dependências das sedes dos Três Poderes – na Praça de mesmo nome. Foi logo nas primeiras horas depois de controlado o motim dirigido, direta e indiretamente pelo grotesco líder homiziado em Miami e, sobretudo, ao final do dia seguinte, quando Lula reuniu e levou as principais autoridades do Judiciário e do Legislativo em visita aos escombros dos Palácios vilipendiados, que ele pôde, de fato e de direito, começar a reconstruir um país submetido a quatro anos de metódica e perversa destruição.

Toda análise sobre o primeiro ano de seu governo deve, assim, partir da constatação do seu grande significado político e de seus objetivos inadiáveis, expressos na consigna “reconstrução”, por ele adotada.

O que remete, necessariamente, à consideração do que significou o período antecedente, os quatro anos em que o Brasil, por vontade própria – embora viciada – foi tomado por uma súcia dedicada ao projeto de destruir tudo o que fora feito nele, ao longo dos últimos trinta anos – segundo confessado, candidamente, em um discurso patético de seu tosco chefe, pronunciado em Washington em homenagem ao guru da Virgínia, no começo de 2019. E a essa missão perversa se dedicou, qual nuvem de gafanhotos, a arraia-miúda convocada para ocupar os milhares de cargos da Administração Federal – gente de baixa e variada extração, civis e militares, fanáticos ou simplesmente oportunistas, mas unidos todos pelo ressentimento social e o ódio político.

Em consequência, o mandatário felizmente afastado pelo voto popular, não logrou concluir o plano imaginado por Hayek – a conjugação do neoliberalismo econômico extremo com o fascismo declarado. O resultado de seu trabalho interrompido se exprime nas conhecidas sequelas provocadas em todos os domínios da vida – da economia à saúde pública; da devastação ambiental e do ataque aos direitos dos indígenas à repressão policial seletiva e cruel contra os habitantes das periferias, sobretudo jovens e negros; do armamento indiscriminado da população ao aumento da violência contra as mulheres; do retrocesso na educação e na cultura ao desmanche das políticas públicas voltadas às pessoas vulneráveis.

Isto fez com que o novo governo, de imediato, tenha tratado de interromper e mitigar os danos causados nestes setores, bem como de inverter as prioridades e metas de atuação – o que foi feito, como lembrado acima, ainda antes mesmo de assumir, durante a montagem das equipes de transição nos diferentes ministérios. Os resultados em algumas áreas foram logo visíveis – de que são exemplos as prontas e efetivas ações de salvamento dos ianomâmis e a expulsão dos garimpeiros ilegais das terras indígenas, envolvendo os Ministérios da Justiça, da Saúde e da Defesa.

A partir de então e ao longo do ano, foram retomadas as consagradas políticas públicas dos governos petistas anteriores, destinadas a propiciar o acesso das populações necessitadas aos direitos mais básicos – como é o caso dos programas Bolsa Família, Farmácia Popular e Minha Casa Minha Vida. Muitas outras intervenções vêm sendo realizadas ou induzidas pelo Governo Federal, no âmbito da saúde e da educação públicas e da defesa e recuperação do meio ambiente.

Para o êxito destas atividades, tornou-se desde logo imperioso recuperar o controle da máquina pública, graças ao apoio indispensável dos servidores de carreira e mediante o expurgo – ainda por completar, aliás – da camarilha fascistóide instalada nos diferentes postos dos ministérios, nela incluídos milhares de militares, inclusive da ativa, sem qualquer qualificação adequada para ocupá-los.

Merece destaque particular, aos efeitos deste despretensioso artigo, a “desbolsonarização” da Polícia Federal, devolvida às suas ações profissionais, gozando plenamente da necessária autonomia operacional, como polícia judiciária e sem prejuízo de sua submissão administrativa ao Ministério da Justiça. Sua atuação em apoio a diversas políticas implementadas em favor dos povos originais e do ambiente natural, são eloquentes exemplos, dentre outros, da recuperação de seu papel institucional em defesa das prerrogativas fundamentais da cidadania.

Já no que se refere, especificamente, à esfera dos direitos civis e políticos, houve avanços a comemorar; mas também recuos e frustrações a lamentar. Assim é que, no que toca aos temas relativos à justiça de transição – expressos na tríade memória/verdade/reparação – malgrado deva ser saudada a reinstalação e funcionamento da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, que fora esvaziada, quando não distorcida por completo no (des)governo anterior, lamentavelmente o mesmo não se pode dizer quanto a outro importante Colegiado desta área.

Trata-se da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, criada por lei em 1995, e que desde então realizou imprescindível trabalho na elucidação dos mais graves crimes lesa-humanidade cometidos durante o período ditatorial pelos agentes dos aparatos montados pelos governos militares para reprimir seus adversários – reais, potenciais ou imaginários. Este órgão foi simplesmente extinto, num dos últimos atos do canhestro ex-presidente e, muito embora o ministro dos Direitos Humanos, ainda no começo do novo governo, tenha elaborado decreto recriando-o, sua edição vem sendo postergada desde então, sob pretextos inaceitáveis. Um deles – colher a manifestação dos militares – sem que se saiba exatamente por quê; de qualquer sorte, havendo notícia de nihil obstat da caserna, inexistem mais motivos para adiar a recriação desta necessária Comissão, em gesto político de inegável significado, real e simbólico.

Ainda a respeito das Forças Armadas, os novos governantes não conseguiram editar a anunciada legislação vedando a participação de seus integrantes nas atividades políticas e partidárias; a proposta de emenda constitucional originalmente apresentada com este objetivo na Câmara dos Deputados não recebeu o impulso esperado do governo. E, não bastasse isso, o ministro da Defesa apresentou outra proposição no Senado, onde aguarda votação, e que se limita a determinar aos membros da ativa que passem à reserva para poderem se candidatar a cargos eletivos; e ainda assim, apenas em eleições federais – permanecendo inalterada a atual situação nos pleitos estaduais e municipais.

Ao longo deste primeiro ano da nova administração petista, registraram-se outras frustrações, talvez maiores que as acima referidas, por dizerem respeito à defesa e promoção dos direitos humanos em questões relativas à segurança pública. Neste particular, o quadro vivido no país, há décadas, é simplesmente lastimável: nossas polícias estão entre as que mais matam no mundo e, além disso, é muito alto o número de policiais mortos em serviço. Tal situação só piorou nos últimos anos, beirando o descontrole, em algumas das principais unidades da Federação – como a Bahia e o Rio de Janeiro, estado onde, ademais, as milícias passaram a exercer o controle de extensas áreas do território.

As populações periféricas das grandes e médias cidades, de modo especial, são submetidas no cotidiano, de um lado, à prepotência das bandas criminosas, cada vez mais organizadas e poderosas; e de outra parte, à violência policial, com a conivência, senão cumplicidade de autoridades locais e regionais – e pior ainda, a aceitação de expressivas parcelas sociais. Diante deste dramático panorama, a nova administração federal frustrou as expectativas nutridas no sentido de, senão estancar de todo, ao menos mitigar os perversos efeitos das equivocadas políticas públicas de segurança há muito adotadas, baseadas nos conceitos falidos de “combate à criminalidade” e de “guerra às drogas”.

Efetivamente, apesar de seu histórico perfil democrático, no primeiro ano da nova gestão, os atuais governantes limitaram-se, diante do recrudescimento da criminalidade, sobretudo urbana, a repetir as surradas e superadas medidas que caracterizam aquelas medidas – por meio do reforço financeiro e material às ações repressivas das polícias.

Destarte, reincidiram nos três erros das políticas de segurança pública brasileiras, conforme apontado em artigo recente pelos respeitados pesquisadores Renato Sérgio de Lima e Daniel Cerqueira – respectivamente, Diretor-presidente e membro do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, órgão responsável pela elaboração anual do Atlas da Violência (in “Como a Bahia se banhou em sangue”, Revista Piauí, postado em 03/10/2023). Trata-se, em primeiro lugar, de contribuir continuamente para o encarceramento massivo do público-alvo das ações seletivas do sistema repressivo (jovens pretos e pardos das periferias das cidades grandes e médias) – que já elevaram o país à condição nada honrosa de terceira maior população carcerária do mundo, com mais de 800.000 presos e detidos.

O segundo equívoco por eles apontado consiste em disseminar e reforçar a crença no uso indiscriminado da força pelos órgãos repressivos, o que resulta não apenas na morte, tortura e prisões ilegais de milhares de pessoas, como também no afastamento crescente dos segmentos populares em relação aos policiais – vistos com temor e raiva, e não com o respeito que lhes seria devido, como servidores públicos que são. E por fim, e não menos importante, estas concepções levam à errônea ideia de que a segurança pública é um assunto exclusivo de polícia – quando na verdade o tema envolve prerrogativas fundamentais da cidadania, o que exige seu tratamento político e técnico, e o controle democrático sobre as agências e agentes encarregados de sua execução.

Ao fim desta retrospectiva crítica do primeiro ano do terceiro mandato do presidente Lula, pode-se concluir que, conquanto se tenham registrado progressos na defesa e promoção dos direitos humanos, em certas áreas – como é o caso da retomada das políticas públicas ambientais e indigenistas, de saúde, educação e habitação –, no que diz respeito a outros pontos relevantes desta agenda, as melhorias foram tímidas. Não por acaso, isso se deu em relação a temas tidos por sensíveis – como segurança pública e tratamento aos militares – deixando a incômoda sensação de mais uma oportunidade perdida para libertar nossa jovem e frágil democracia das tutelas indevidas que ainda a ameaçam. (Publicado no Sul XXI, 25/12/2023)

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Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
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