Seria para comprar apenas açúcar e macarrão. Mas, por desejo ou alguma necessidade antes inexistente, colocou no carrinho de compras mais alguns produtos. A conta deu 327 reais e 19 centavos. Pagou com duas notas de 200.

A moça do caixa, de sorriso apático entre a polidez e o tédio, esfregou-as repetidamente com as pontas dos dedos a sentir sua textura. Olhou-as contra a luz com olhos estreitados de quem busca o ínfimo detalhe. Repetiu o processo duas vezes. Uma luz acesa em cima do caixa atraiu a moça com ares de gerente. A caixa lhe entregou as notas de 200 maquinalmente.

Por detrás de um balcão, ela repetiu os mesmos procedimentos feitos pela caixa, que permanecia em um entediado silêncio. Testou as cédulas com uma caneta especial e luz ultravioleta, engenhocas de fácil uso, mas que naquele mercado é instrumento de uso privilegiado de instâncias superiores às de quem opera caixas.

“Houve algum problema?”, quis saber o cliente, já demonstrando a impaciência de quem não tem mais o que fazer por ali, o incômodo da suspeição e a chateação dos olhares chateados dos clientes enfileirados que pareciam lhe atribuir a culpa pela pasmacenta demora.

“Não. É o procedimento”. Respondeu a operadora de caixa com sorriso que forçava alguma simpatia. “Procedimento para receber dinheiro?”. “Quando a nota é alta, que nem esta do senhor. Sabe como é, tem gente em quem não se pode confiar”. “Sei…”, respondeu com inconformismo.

As notas retornaram às mãos da operadora do mesmo jeito que saíram. Sem uma troca de palavras ou olhares entre as duas. “Tudo certo, senhor”.

À saída, o segurança aproximou-se lentamente do carrinho de compras, já estendendo a mão. “A nota, por favor.”. “Fiscal da receita?”, disse o cliente tentando fazer graça. O segurança não riu. “É o procedimento”. Conferiu a conformidade entre as poucas compras e as anotações da nota. “Obrigado, senhor”.

No caminho de casa, parou em uma banca de jornais de porta estreita. Ao nível dos olhos, a placa sorridente avisava que o ambiente era filmado. Só era possível entrar um cliente por vez, por segurança, explicou o jornaleiro. Esperou. Entrou e pagou em dinheiro. Nota de 20 reais. Viu a repetição dos mesmos gestos da moça do caixa do supermercado. “Procedimento…”, pensou.

Em casa, guardou as compras e esparramou-se no sofá. A caminhada, apesar de pequena, cansou-lhe mais do que o esperado. Culpou o calor. Abriu uma cerveja e fechou a persiana da sala, com receio dos possíveis olhares de vizinhos curiosos. “É o procedimento”, falou para si mesmo.

Ligou a TV por ligar. Sem saber ao que assistir. Imagens de um canal de notícias se sucediam na tela. O procedimento não lhe saía da cabeça. Sentia-se culpado sem culpa. Afetado pela desconfiança alheia. Como se o fato de esperarem dele o pior o tornasse devedor deste pior. Suspeito por princípio, não lhe bastava a honestidade, era preciso submeter-se ao procedimento da desconfiança. Ao dedilhar das notas que entrega, às conferências de papéis e intenções. Às vezes, submeter-se a procedimentos muito piores.

Ao levar a cerveja à boca, contemplou a pele negra de sua mão. “É o procedimento, o procedimento…”. Na TV, jornalistas brancos comentavam a beleza do inverno de New York.

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Ilustração: Mihai Cauli
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