Recentemente passado um ano do episódio, muito já se voltou a falar e escrever sobre a invasão da Esplanada dos Ministérios e da Praça dos Três Poderes, seguida da depredação e conspurcação dos Palácios do Planalto, do Supremo Tribunal Federal e do Congresso Nacional por uma turba de bolsonaristas possessos, escoltados, quando não estimulados e ajudados por policiais militares do Distrito Federal, e até mesmo do batalhão do Exército encarregado da defesa daqueles espaços.
Sem qualquer pretensão de originalidade, não se pode escapar do óbvio simbolismo do estúpido ataque aos mencionados prédios públicos (tombados como patrimônio da humanidade pela UNESCO), na medida em que eles constituem as representações físicas das principais instituições democráticas do país. Ao invadi-los e depredar suas instalações – inclusive obras de arte de valor inestimável, fruto do talento de artistas notáveis –, a horda golpista violentou os locais que sediam e simbolizam o exercício da política junto aos três maiores poderes da República, agredindo frontal e diretamente a própria democracia, regime que é condição indispensável à coexistência coletiva pacífica e civilizada.
Este é o primeiro e fundamental motivo pelo qual se justificou plenamente a pronta reação rigorosa das autoridades constituídas – sobretudo do Judiciário e do Executivo – ao desencadear a justa e necessária repressão a mais de um milhar de participantes dos atos criminosos em questão, presos em flagrante e desde então submetidos aos procedimentos previstos na legislação processual penal para a persecução, policial e judicial, dos autores de infrações penais graves, como é o caso.
Contudo, para além das circunstâncias já apuradas e ainda em apuração que revestiram as ações e omissões que levaram aos inacreditáveis fatos ocorridos em Brasília no dia 8 de janeiro do ano passado, há que se atentar mais detidamente à natureza dos três alvos dos ataques – o que por si só é capaz de revelar o quê, e quem estava, e ainda está por trás desta grotesca tentativa de golpe militar, por meio da disseminação do caos e da desordem.
Assim, ao invadirem os edifícios da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, quebrando portas e vidros e violando seus salões e plenários, os terroristas – assim foram e devem continuar a ser devidamente tratados – deram vazão à sua profunda rejeição da política, fruto do discurso a que vem sendo exposta nossa população há anos, intensificado especialmente a partir de 2013.
Neste particular, sempre é bom recordar que o bolsonarismo, como modalidade do neofascismo contemporâneo, consiste na face mais violenta de outro lamentável fenômeno recente da vida brasileira – o lavajatismo. Como dito e demonstrado em muitas oportunidades, e por vários observadores da cena nacional, a malsinada “força-tarefa” montada e operada desde o foro criminal federal de Curitiba, seguindo instruções e interesses ditados pelo Departamento de Justiça norte-americano, baseou-se fundamentalmente na articulação discursiva da repulsa ao sistema político, apresentado como definitivamente contaminado pela corrupção de governantes e servidores públicos.
Se alguma dúvida ainda podia restar a respeito, desvaneceu-se por completo com o escândalo chamado de “vaza-jato” – o vazamento das conversas entre os agentes do ministério público federal e do então juiz federal que os coordenava nas abusivas e ilegais ações, desencadeadas à base de prisões provisórias e exposições diárias na mídia, buscando desacreditar os políticos, sobretudo Lula e seus correligionários e aliados. Não estranha, portanto, que a sanha destrutiva dos energúmenos a serviço do golpe, felizmente abortado, tenha-se em seguida voltado contra o Palácio do Planalto – onde, ao que parece, tiveram sua entrada facilitada por quem deveria protegê-lo – local de trabalho do presidente da República legitimamente escolhido pela maioria do povo brasileiro, e alvo preferencial de seu ódio visceral.
Da mesma forma, o terceiro destino da criminosa investida da corja fascista – o edifício do STF, cujo Plenário, inclusive, foi violado – representa a materialização concreta de outro objeto especial de sua ira, sabido que a Suprema Corte vem-se constituindo, principalmente desde 2021, no mais efetivo anteparo às investidas autoritárias de seu chefe. Daí que o gabinete do ministro Alexandre de Moraes tenha sido particularmente visado pelos invasores, uma vez que se deve a ele, como Relator dos inquéritos abertos no Supremo para apurar os crimes praticados pelos adeptos de seu boçal líder, as mais firmes e severas medidas tomadas contra aqueles.
Se antes e também imediatamente após a eleição presidencial e a proclamação de seu resultado, o fanático rebanho do “mito” já vinha praticando graves delitos – em Brasília mesmo, por duas vezes, em dezembro de 2022 – desta feita, seus integrantes incorreram no capítulo dos “crimes contra o Estado” do Código Penal, infringindo normas que vieram a substituir a revogada Lei de Segurança Nacional.
Com efeito, os comportamentos ativos e omissivos que precederam, acompanharam e sucederam às violentas invasões dos Palácios da Praça dos Três Poderes, devem ser enquadrados – como corretamente o foram – em vários dos tipos penais lá previstos, desde “associação para a prática de crimes” até “tentativa de golpe de Estado”, passando por “abolição violenta do Estado Democrático de Direito” e “dano qualificado contra bem público”, entre outros.
A propósito, se houve alguma imprevisão de parte das autoridades federais que tinham acabado de assumir o governo – até mesmo pelo conluio de parte do sistema policial e militar com o golpe tentado – sua reação, ainda na tarde e noite daquele malfadado domingo, e principalmente a partir do dia seguinte, foi efetiva e dura, respeitadas estritamente as prescrições constitucionais e legais, com a prisão, identificação e qualificação criminal de mais de mil participantes dos atos criminosos, não apenas na capital federal mas também em outras partes do país, além das ordens emitidas contra pessoas que se encontravam no exterior.
Ademais, o afastamento do governador do Distrito Federal e a prisão de seu secretário de Segurança e do comandante da Polícia Militar, determinados prontamente pelo ministro Alexandre de Moraes, mostraram-se respostas eficazes e necessárias para estancar as eventuais veleidades autoritárias de outros golpistas. E releva salientar também as decisivas providências adotadas pelo presidente Lula, ao decretar ainda naquele dia, a intervenção civil na Segurança Pública do Distrito Federal, atendendo oportuna sugestão do seu ministro da Justiça, Flávio Dino; e na noite seguinte, reunindo no Planalto quase todos os governadores de estados e os chefes dos demais Poderes, bem como líderes de vários partidos.
Ao final deste evento, aliás, bem ao seu estilo, convidou todos os presentes a se dirigirem com ele até o edifício do Supremo, ainda ultrajado, num gesto simbólico e concreto de defesa da democracia – capaz, senão de apagar, ao menos esmaecer o efeito dramático das imagens das cenas de vandalismo da véspera. Diante da conjuntura inesperada, não poderia haver melhor antídoto à visível tentativa de golpe, felizmente gorado, do que a coesão, não apenas de Lula e da frente ampla que o ajudou a eleger-se, mas até mesmo de adversários, em defesa das instituições democráticas atacadas. Outro resultado destes gestos políticos acertados – aprovados pela maioria da população, como ainda mostram as pesquisas – foi o desbaratamento momentâneo do movimento golpista.
Com efeito, a diligente e contínua ação da Polícia Federal, sempre de acordo com as prescrições legais e constitucionais, e sob as ordens minuciosas do atento ministro Alexandre de Moraes – respaldadas por seus colegas da Suprema Corte – redundou de imediato na prisão de quase 1400 pessoas, número acrescido ao longo do ano pela detenção de centenas de suspeitos em várias cidades do país.
Em consequência destas investigações, o Ministério Público Federal já ofereceu até o momento denúncia contra 1413 réus – dos quais, 1156 como incitadores, 248 como executores e um como financiador dos crimes ocorridos em Brasília, além de oito agentes públicos diretamente envolvidos em sua prática. Das 232 denúncias recebidas pelo STF – ou seja, admitidas para o efeito de processar criminalmente os denunciados – 30 deles já foram condenados, a penas que variam de três a 17 anos de reclusão, além de multa penal.
Ainda restam 70 pessoas com prisão preventiva decretada e centenas de outras a tiveram substituída por outras medidas restritivas da liberdade. Há ainda também muitas que aguardam a celebração de transação penal com o Ministério Público, o que significa admissão de culpa por delitos de menor potencial ofensivo e cumprimento de penas substitutivas.
Ressalvada a efetividade destas providências e de outras tantas ainda em andamento, não se deve perder de vista que, embora tenham sido forçados a recuar e estejam na defensiva, os neofascistas permanecem mobilizados e são perigosos; e apesar do visível enfraquecimento de sua boçal liderança, eles persistem como ameaça concreta à plena efetivação da vida democrática e à reconstrução nacional, tarefas às quais o novo governo tem-se dedicado.
E este, de sua parte, deveria aproveitar o momento de união política e institucional ensejado pelo abortamento do putsch, não apenas para isolar e neutralizar seus inimigos, mas também para, de uma vez por todas, com habilidade, mas com firmeza, enfrentar e debelar de vez o vício de origem do regime político instituído a partir da Constituição de 1988.
Afinal, como nos alertava há anos o saudoso José Paulo Bisol, a nossa continua sendo uma democracia tutelada.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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