“Senhores Generais do Alto Comando!”, disse bem alto, silabando palavra por palavra e em volume maior os últimos sons de cada uma. Como quem ordena e quer deixar claro que o sinal para obedecer vem com a última sílaba. Gosta especialmente da expressão “Alto Comando”. Pronunciou com pose de quem diz algo importante, algo sagrado. Os olhos brilharam em lágrimas e as bochechas se avolumaram para caber na boca o orgulho de dizê-la. É evocação do poder que não tem. Da destruição que deseja. Siqueira estava esperançoso e orgulhoso de sua voz ecoar pelo acampamento patriótico enquanto lia a carta.
“Nós, o povo brasileiro, exigimos que acionem as medidas de garantia da lei e da ordem para salvar nosso país do caos que nós mesmos provocaremos, caso nossa vontade não seja atendida em até setenta e duas horas!”. Olhou rápido para a meia dúzia que o aplaudia entre os quase 50 ouvintes. Esperava mais aplausos nesta hora, como se fosse um clímax. “Estamos convictos de que as eleições foram fraudadas. O relatório produzido pelo nosso glorioso Exército é claro em afirmar que apesar de não haver indício de fraude, ela pode acontecer. Além do mais, as evidências em nossos grupos de WhatsApp mostram que ganhamos com mais de oitocentos milhões de votos!”. Ninguém aplaudiu. Entonação errada, pensou.
“Os senhores, militares, são o esteio da moral. E vem mostrando isso na gestão competente das ordens do presidente em vários momentos. À frente do Ministério da Saúde, mesmo contra a ciência comunista e diante da morte de quase setecentos mil brasileiros não recuaram à obediência cega às ordens de seu comandante supremo. Comandante que é, certamente, um exemplo de militar. Pela bravura com que enfrenta mulheres e os mais fracos. Pela franqueza de quem sempre diz a verdade e, depois, dela uma verdade que diz outra coisa que o dito pela primeira, mas sempre foram distorções. Coisas que não eram bem assim porque foram distorcidas pela conspiração comunista!”.
Siqueira falou firme nesta hora. Era o preparo retórico do anúncio da grande causa. Da causa da causa de estarem ali. De tomarem chuva dia e noite. De cantarolarem e rezarem a Jesus pela vinda de um anjo vingador. Curioso que Siqueira não era nacionalista fervoroso, exceto em Copa do Mundo. Nem religioso. Sagrado, para ele, era só fim de semana e feriado. Mas a conspiração o fez mudar. Revirou-se pelo avesso de si mesmo. Agora, dá as costas à TV na hora do jogo e faz cara feia para quem comemora gol. Reza de olho apertado e fala em línguas estranhas que ninguém entende, nem os anjos. E vê na pátria o sentido de tudo. O tudo do todo.
Mas o WhatsApp e o Facebook lhe mostraram a verdade. Aquela verdadeira. A que o libertou de si mesmo e soltou ao mundo o novo Siqueira. O Siqueira mais que Siqueira. O Siqueira patriota. O Siqueira que faz coisas grandiosas, como ler na frente de um quartel do Exército uma carta que ele mesmo escreveu como se fosse escrita por todo um povo.
“A fraude é parte do plano de dominação comunista. Que quer apenas nos escravizar para que possam roubar tudo que é nosso. Para dividirem nossas casas com gente que não se esforçou como nós. Querem acabar com a família cristã, porque só ela é capaz de resistir ao comunismo!”. Fez uma pausa dramática e encarou sua plateia segurando a emoção do choro. “Generais do Alto Comando, eu vos invoco! Eu vos invoco! EU VOS IN-VO-COOOOO!”. E seu grito dispersou-se no vazio melancólico das ruas e mentes à porta do quartel.
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Ilustração: Mihai Cauli
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