A recente “operação contenção” do Rio de Janeiro, com seus quase 130 mortos, trouxe a questão do confronto armado e da letalidade policial, dividindo a sociedade entre uma presumível maioria que apoia o assassinato sumário de suspeitos e uma minoria que enfatiza a necessidade de investigação e prevenção social para lidar com as complexas realidades da violência das redes criminais. A experiência de um estado vizinho, muito menor e menos célebre, pode trazer algumas lições para pensar o assunto.

Embora tenha alguns dos municípios mais antigos do Brasil (Vila Velha, Vitória e São Mateus), o Espírito Santo era um estado rural até a década de 1960, com economia dependente do café, e população reduzida e dispersa por municípios do interior, com um padrão de ocupação misto, em parte pela tradicional “grande lavoura” colonial, em parte por famílias de imigrantes estrangeiros, principalmente italianos, portugueses e alemães, chegados entre o final do século XIX e início do século XX, de maneira similar ao que ocorreu nos estados do Sul do Brasil. A capital, Vitória, que até a Independência era basicamente um forte da marinha portuguesa, ainda hoje possui menos de 400 mil moradores.

O processo de urbanização e adensamento na capital e, principalmente, no entorno metropolitano foi rápido e caótico, puxado pelo êxodo rural e imigração de trabalhadores de estados vizinhos, em especial Minas Gerais e Bahia, os quais foram trabalhar em projetos industriais promovidos pela guinada “desenvolvimentista” do regime militar após o fim do PAEG. A ocupação de áreas informais de moradia serviu para a formação de clientelas políticas sob condições precárias, concentrando a miséria em territórios desorganizados, que logo se tornaram cenário de violência interpessoal e policial, vindo a ser controladas por gangues armadas com a expansão do tráfico de drogas.

Dizia-se, nos inícios dos anos 2000, que o “crime organizado” estava “infiltrado” nas instituições políticas do Espírito Santo, em especial o Tribunal de Justiça, a Assembleia Legislativa e as polícias estaduais. Isso não é de todo verdade, porque nunca existiu este estado saudoso e imaculado, que posteriormente foi infiltrado por grupos criminais que nada tinham a ver com a política e a burocracia locais. Foi o estado, ou melhor, a elite política local e seu aparato de segurança e justiça, que criou e nutriu o “crime organizado”. Foi um movimento dos governadores impostos pela ditadura militar, que inclusive foi objeto de investigação do SNI e da embaixada dos Estados Unidos, segundo o estudo de caso da socióloga Martha O’Huggins.

Os aliados e funcionários locais do regime militar no Espírito Santo, como não deixou de ocorrer em outros estados da federação, criaram grupos de extermínio para gerir, por meio da execução sumária, a população pobre urbana, que cresceu absurdamente dos anos 1960 aos 2000. No Espírito Santo, foi o núcleo do governo estadual que tomou a iniciativa. É claro que este aparato de assassinato apoiado pelo estado também serviu para gerir negócios ilícitos, eliminar desafetos políticos e pessoais e promover carreiras políticas. O extermínio de testemunhas no caso do estupro e assassinato da menina Araceli, cujos agressores eram herdeiros de políticos e empresários ligados ao regime militar, é um caso chocante de como o grupo especializado em “matar bandidos” pode facilmente servir para matar qualquer um que o contratante quiser. Os “justiceiros”, de fato, serviam à criminalidade organizada.

Depois que estes grupos perderam a primeira eleição nos anos 1980, começaram a operar na “iniciativa privada” e prefeituras, mantendo posições na polícia, judiciário e legislativo, de onde exerciam grande influência. Foi nessa época que criaram a Scuderie Le Cocq do Espírito Santo. Tratava-se de uma “associação sem fins lucrativos”, composta principalmente por policiais civis e militares, mas também reunia políticos, empresários, advogados e até juízes e promotores, todos unidos contra a criminalidade que ameaçava os cidadãos de bem e em apoio aos policiais que arriscavam sua vida para manter a ordem e a segurança. Isso no papel. Na prática, funcionava como uma organização paramilitar, que intermediava assassinatos por encomenda e ajudava a proteger os mandantes, além de extorquir “taxas de proteção” de grupos criminais e comerciantes. Um “esquadrão da morte” com CNPJ. Não era uma organização criminosa “infiltrada” no Estado, porque veio do Estado. Mesmo perdendo o comando do Executivo estadual, nunca esteve realmente fora das instituições.

Este período também foi de grave crise fiscal no estado. O governo estadual e numerosas prefeituras tinham dificuldades de pagar os servidores. Os governadores democráticos do período não tiveram apoio interno ou externo para fazer frente a essa situação. Não tinham comando da polícia, que se autogeria. Por isso, se mostraram basicamente incapazes ou desinteressados para agir contra as redes criminosas, que eram influentes nas polícias, no Legislativo e no Judiciário, e às vezes no controle direto de prefeituras, como as da Serra e de Cariacica.

No entanto, a ação homicida e corruptora deste grupo, fundado em 1984, motivou várias investigações da polícia civil estadual, da polícia federal e da CPI do narcotráfico, culminando com o pedido de extinção em 1999, só decidido pela justiça federal em 2004. Neste meio tempo, o Espírito Santo foi objeto de pedidos de intervenção federal, que não prosperaram. Em resposta, o então presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) preferiu nomear uma força-tarefa investigativa. O assassinato do juiz Alexandre Martins, executado a mando de um coronel da PMES, causou comoção social e contribuiu para acelerar inquéritos e processos contra alguns poderosos locais.

No início dos anos 2000 também vieram os royalties do petróleo, reestruturação fiscal estadual e investimentos industriais e sociais do governo federal. A situação econômica melhorou de maneira significativa, com altas taxas de crescimento econômico e forte efetividade dos programas federais de inclusão no consumo. A despeito da narrativa da guinada política capixaba em 2002, os governadores desde então foram ligados a governadores dos anos 1990 (Paulo Hartung foi ligado a José Ignácio, enquanto Renato Casagrande foi vice de Victor Buaiz). Apesar da retórica de vitória contra a criminalidade, conduzida pelo governo estadual por meio do hiper-encarceramento e modernização policial, as taxas de homicídios continuaram a crescer, atingindo o auge em 2009.

O assassinato e tortura de pobres, em especial quando suspeitos de serem usuários ou traficantes de drogas, não causa a mesma comoção que as mortes de profissionais de classe média ou alta, o que explica a percepção difusa de uma grande vitória estadual contra o “crime organizado”, a despeito do grande número de execuções sumárias nas favelas e o quase colapso do sistema penitenciário local. De 2010 em diante, porém, os homicídios começaram a cair gradualmente, por três motivos.

Primeiro, o Estatuto do Desarmamento e a redução da desigualdade econômica começaram a fazer sentir seus efeitos graduais. Segundo, pelo investimento massivo no sistema penitenciário, expandido e modernizado entre 2008 e 2010. Apesar da condução criticável, mediante dispensa de licitação depois de anos de negligência com o problema, esta política foi importante para estabelecer um mínimo de ordem interna nas prisões, sem a qual não há investimento viável em reintegração social.

Terceiro, o Programa Estado Presente (2011-2014; 2019-2026), uma governança que articula polícias e políticas sociais, sob liderança do governador e orientada por dados quantitativos, que permitiram focalizar os esforços inter setoriais na repressão e prevenção dos homicídios dolosos em territórios que concentram a maioria das ocorrências do estado.

Embora gangues armadas ainda atuem na periferia, a polícia cometa excessos e as “facções” tenham chegado ao estado, estas políticas e fatores contribuíram para aumentar o custo de oportunidade do uso da violência letal e reforçar os controles institucionais. Como se vê no exemplo do Espírito Santo, “matar bandidos” é só uma cobertura para a aliança entre políticos e redes criminosas. A resposta passa por buscar políticas eficazes, e não espetaculares.

Este texto é um resumo dos seguintes trabalhos:

  • BITTENCOURT, Matheus Boni; DADALTO, Maria Cristina. Seletividade penal e criminalidade violenta: os esquadrões da morte e as masmorras no estado do Espírito Santo. Dilemas-Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, v. 10, n. 2, p. 189-213, 2017.
  • BITTENCOURT, Matheus Boni. Segurança pública e homicídios intencionais: fatores socioeconômicos e políticas públicas no Espírito Santo (1980-2022). Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, v. 18, n. 01, p. e63683, 2025.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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