Em algum município da região metropolitana de Porto Alegre havia um vereador de muitos mandatos que, mais por diabo que por velho, conhecia todos os atalhos da administração municipal. No início da semana passava pelas secretarias perguntando o que seria realizado nos próximos dias. Anotava o cronograma e ia aos bairros. Reunia o povo e falava grosso:

– O quê, ainda não taparam esse buraco?! Eu vou sair daqui e mandar o prefeito resolver isso pra já. Vou dizer a ele que se não consertar isso até quinta-feira, vou virar a mesa!

Claro que na quinta-feira lá estava a equipe de obras, cumprindo sua programação rotineira. No dia seguinte, voltava o raposão:

– Então, o prefeito consertou? Comigo é assim.

Pois agora, a coisa chegou à Universidade. Anote todos os sinônimos que você recordar para vergonhoso, deplorável, ridículo. Telefone para aquele seu parente colérico e peça-lhe sugestões. E então comece seu artigo, sua postagem, sua fala, seu comentário sobre a participação de um deputado federal, acostumado ao papel farsesco, na recente escolha do novo reitor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que enfatiza ser “a melhor universidade pública do Brasil”.

Conforme todas as regras escritas, a universidade realizou em 13 de julho, online, a eleição de renovação da Reitoria para o período 2020-2024. Jubilosamente, participaram da votação 15.725 servidores, alunos e professores. O dobro dos cerca de 7.700 de quatro anos atrás. Com a maior participação de estudantes na história.

De acordo com as atuais regras de pesos diferenciados para consulta na UFRGS (professores 7, servidores 1,5 e alunos 1,5), o atual reitor e a vice, Rui Oppermann e Jane Tutikian, foram os primeiros colocados, seguidos por Karla Maria Müller (e Cláudia Wasserman), em segundo, e Carlos André Bulhões Mendes (e Patrícia Helena Lucas Pranke), em terceiro. Se a votação fosse one man, one vote, Karla Maria Müller teria vencido com 8.947 votos (57,75%), o atual reitor teria ficado em segundo, com 30,23% do total, e o professor Carlos André Bulhões Mendes, em terceiro, com apenas 1.860 votos (12%).

Dias após, o Conselho Universitário referendou o resultado e o enviou ao Ministério da Educação.

Durante dois meses, o caso ficou em silêncio num MEC trôpego e desmoralizado. Nesse espaço aconteceu a lambança. O deputado federal Alcíbio Mesquita Bibo Nunes (PSL-RS) – bolsonarista de posar fazendo arminha, como seu mito, e famoso por vestir um terno feito com a bandeira do Brasil – circulou pelos meios de comunicação anunciando que iria ao presidente defender a nomeação do professor Carlos Bulhões, para acabar com a ideologização na UFRGS.

“Que vergonha que o reitor da Universidade seja indicado pelo Bibo Nunes”, foi o menos que disseram. Mais alguns dias e ele voltou com o “eu não disse?” O Diário Oficial da União publicou a nomeação do menos votado em todas as categorias de eleitores, professores, servidores e alunos.

Ressalto que o professor Carlos Bulhões é um homem íntegro. Engenheiro civil, doutor em planejamento de recursos hídricos e pós-doutor em planejamento ambiental, professor titular e diretor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS. Coisa diferente é o atalho que pegou para dirigir a Universidade.

Intervenções nas Universidades

O questionamento da indicação sequer tem a ver com sua declaração, durante a campanha, de que o presidente deveria nomear o preferido da corporação acadêmica. Na crise eleitoral anterior, em 1988, Gerhard Jacob, último colocado na eleição interna, também defendia o respeito à decisão da comunidade. Usando os métodos da ditadura, formalmente recém-terminada, foi à Brasília fortalecer as restrições políticas contra o mais votado, Alceu Ferrari, e articular-se com os ministros Paulo Brossard e Hugo Napoleão para embolsar o cargo.

É autor de uma das mais vergonhosas frases das disputas para reitor. Disse que não poderia recusar sua própria nomeação pelo presidente José Sarney, pois a escolha “é decisão da autoridade superior, a que não posso desobedecer. Se o fizesse, estaria cometendo uma ilegalidade”.

Os alunos se rebelaram e tentaram impedir sua posse. Ocuparam o prédio da Reitoria, sequestraram por cinco horas o Conselho Universitário, exigindo a renúncia de Jacob. Chamada por ele, a Polícia Militar do governador Pedro Simon invadiu o campus, jogou gás lacrimogêneo na barricada de estudantes, botou a porta abaixo e o liberou para uma gestão tumultuada que não durou mais que dois anos até sua renúncia.

Depois dessa, nos últimos 32 anos os presidentes da República respeitaram as indicações e até agora não haviam mais provocado crises na UFRGS. Mas a nomeação de Carlos Mendes era bola cantada. Um levantamento do blog Sul 21 mostra que Jair Bolsonaro já interviu em 14 Universidades e Institutos Federais, nomeando para suas Reitorias candidatos derrotados na votação de professores, funcionários e alunos, mas oponentes de candidatos progressistas ou francamente simpatizantes de seu projeto político.

Sim, por força de Decreto, cabe ao presidente da República nomear o reitor das instituições federais de ensino superior, dentre três nomes por elas sugeridos. Instituiu-se que isso seria feito através de eleições internas às corporações. Desde o governo de FHC foram nomeados os mais votados. Já com Bolsonaro, bem, Bolsonaro não caiu longe do pé da ditadura.

Autonomia restrita

O fato é que todos os presidentes exercem o poder de nomear os reitores, tomando as eleições internas tão somente como sugestões para sua livre escolha. Nenhum deu consequência plena ao artigo 207 da Constituição Brasileira, assumindo integralmente que “as universidades têm autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial”, estendendo-lhes também o poder de decidir que as dirigirá. Afinal, suas atividades são excêntricas à gestão governamental e, assim, prescindem da sanção do governo.

A autonomia da corporação para a indicação, a propósito, é adotada para cargos que integram a própria estrutura governamental, aí sim, de estrita escolha pessoal ao presidente: os ministros do Exército, Marinha e Aeronáutica foram escolhidos pelas corporações em todos os governos desde o final da ditadura. Sem lista tríplice. Mas os presidentes civis devem ter optado por não discutir com ninguém armado, como eu. Assim é que somente as FFAA, que não contam com autonomia constitucional, indicam seus representantes no governo. De ministros a assessores do STF.

O fato é que as listas tríplices das Universidades têm pouco a ver com democracia. São apenas uma sugestão ao presidente da República – que pode escolher quem lhe convier. Assim, indicar o último também é sua prerrogativa. Se o presidente for um democrata, a escolha será democrática, no sentido dado pela comunidade acadêmica. Se não, até o Bibo Nunes vira eleitor. E é da natureza do projeto político de Bolsonaro afrontar a educação, a cultura, a ciência e tudo o que não se assemelhe a ele.

Enfim, com a intervenção bolsonarista e a manutenção do voto censitário, atualiza-se a pauta de lutas externas e internas. E o precário Bibo Nunes fez arminha e agora anda por aí com um reitor pelo braço, marrento como o velho vereador.

 

Ver artigo relacionado: Paulo Torelly “Democracia e resistência universitária”.