A principal jogada de Lula para voltar ao poder é ter o conservador Geraldo Alckmin como candidato a vice
Em junho de 2013, a esquerda e a direita brasileiras protagonizaram um inédito anúncio conjunto. Após semanas de protestos de rua, convocados pelo Movimento Passe Livre (MPL), o prefeito de São Paulo (Fernando Haddad, Partido dos Trabalhadores, PT) e o governador do Estado (Geraldo Alckmin, Partido da Socialdemocracia Brasileira, PSDB) decretaram a diminuição do preço das passagens do transporte coletivo. Do Palácio dos Bandeirantes, sede do governo do Estado de São Paulo, os dois políticos comunicaram a redução de R$ 3,20 para R$ 3,00, falando em “espírito democrático”, “escuta” e “cidadania”. O autonomista MPL, esquerda radical para o establishment, forçou uma inesperada aliança esquerda-direita.
Longe de esfriar os ânimos, os protestos continuaram, especialmente ligados ao direito à cidade e à participação democrática. Prosseguiram para além da Copa do Mundo de 2014 e chegaram às portas das eleições de outubro, nas quais uma terceira via parecia viável: a candidatura da ambientalista Marina Silva. Os dois grandes partidos reativaram a polarização em uma campanha tensa e repleta de ataques, principalmente contra Marina Silva. Dilma Rousseff (PT) e Aécio Neves (PSDB) passaram para o segundo turno. Na reta final, uma montagem fotográfica fundia os rostos de Dilma e Aécio. Na hashtag #DilmAecio foram denunciadas as semelhanças excessivas de ambos os candidatos, roçando o centro cada um por um lado. A extrema polarização não refletia, como denunciaram inúmeras vozes, programas políticos muito sintonizados.
Nove anos após o momento love de PT e PSDB no Palácio dos Bandeirantes, Luiz Inácio Lula da Silva, presidente do Brasil entre 2002 e 2010, anunciou oficialmente seu retorno à política com uma aliança que segue desconcertando a esquerda. Geraldo Alckmin – líder moral da centro-direita brasileira, ex-governador de São Paulo, candidato à presidência em 2006 – será o candidato a vice-presidente de Lula nas eleições de outubro. Depois da aliança PT-PSDB em 2013, agora a deriva ultradireitista do Brasil de Bolsonaro forçou a candidatura Lula-Alckmin, impensável há alguns anos. Como se explica a estratégia de Lula?
Por uma frente democrática
Há alguns meses, um dos ministros do primeiro governo Lula me explicava em sua casa a necessidade de ter Alckmin. Seu filho, ligado a movimentos sociais, critica a aliança com o arqui-inimigo tucano (como são conhecidos os membros do PSDB). O plano de Lula é cheio de sutilezas. Primeira: Alckmin deixou o PSDB e agora é membro do Partido Socialista Brasileiro (PSB), de centro-esquerda, um dos maiores do Congresso. Com esse movimento, Lula tranquiliza os mercados e a esquerda simultaneamente. Além disso, torna mais difícil ser enquadrado como comunista pela propaganda de Bolsonaro.
Como se não bastasse, a saída de Alckmin do PSDB aprofunda a crise do partido conservador. Segunda sutileza: Lula conseguiu impedir que o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) lançasse um candidato à presidência. Não há candidatura no flanco esquerdo, uma das obsessões do PT nos últimos anos. Terceira sutileza: Lula está descrevendo sua candidatura como uma “frente democrática” contra a extrema direita, não como uma frente de esquerda. Ao mesmo tempo, argumenta que sua aliança é um conglomerado de movimentos sociais. Vamos Juntos pelo Brasil já conta com sete partidos políticos (da esquerda ao centro) e conta com o apoio de sete centrais sindicais, além de movimentos sociais históricos como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
O ex-ministro de Lula me explicava pragmaticamente que o estado de São Paulo (33 milhões de eleitores) decidirá as eleições e que uma figura como Alckmin pode dar a Lula até 7% do total de votos do país. “O Brasil só vota na esquerda se o vice-presidente for de centro”, garantiu. Seu filho, apesar de criticar a aliança, confessou que artistas e movimentos sociais estarão na boca do canhão apoiando Lula. Na verdade, o jingle pré-campanha de Lula – Lula voltou, cheio de piscadelas para o Nordeste, grande reserva eleitoral da esquerda – não foi lançado a partir da conta oficial do PT, mas de múltiplos perfis de movimentos e coletivos.
Antes de nos despedirmos, o filho do ex-ministro, de violão na mão, cantou Lula-lá, o jingle que Lula usou em 1989, em suas primeiras eleições. Há algumas semanas, a música oficial de Lula para as eleições de outubro incorporou o grito emocionado e nostálgico Lula-lá. Algo que não apenas confirma o quão bem informados o ex-ministro e seu filho estavam, mas também o poder de uma sincronia de sutilezas cuidadosamente planejada para desalojar Bolsonaro do poder.
Contradições
Vamos Juntos pelo Brasil tem o selo de Lula. Seria inviável em torno de outro líder político, até mesmo do PT. Nem Dilma Rousseff nem Fernando Haddad conseguiriam conciliar gestos, alianças e discursos tão contraditórios. Lula não foi um presidente comunista nem escolheu o caminho político da Venezuela, como afirmava o ecossistema de fake news que amparou Bolsonaro. Apesar de sua narrativa popular, Lula foi o presidente do acordão: um grande acordo que injetou recursos (e dignidade) nos mais desfavorecidos e permitiu que as elites ganhassem dinheiro. Suas políticas públicas de inclusão – cotas universitárias para índios, negros e pobres ou o programa Bolsa Família – conviviam com leis favoráveis aos ruralistas. A reforma agrária não veio nos 13 anos de governos petistas. Mas há outras leis históricas, como a PEC das domésticas de Dilma Rousseff, que deu direitos a milhões de trabalhadoras domésticas.
Enquanto o PT estava construindo centenas de universidades públicas e mantinha o setor público à tona, fez do pastor evangélico Marco Feliciano presidente da Comissão de Direitos Humanos do Congresso. Estica e afrouxa, avanços e concessões. Algumas melhorias sociais em troca de não tocar em alguns privilégios. Crescimento econômico à custa de não proteger tanto o meio ambiente. O acordão de Lula passava por um pacto com o centrão (conglomerado oportunista de partidos conservadores) no Congresso e por um acordo não escrito: que o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (atual MDB) teria o vice-presidente na chapa do PT. Geraldo Alckmin cumprirá em 2022 um papel semelhante ao de José Alencar (2002, 2006) e Michel Temer (2014). Semelhante, mas não igual. Em um Brasil devastado pelo bolsonarismo e pela pandemia, as regras do jogo mudaram.
Mito reforçado
Os 580 dias que Lula passou na prisão, longe de destruir sua imagem, reforçaram seu mito. A sentença do Supremo Tribunal Federal anulou as condenações contra Lula pela operação Lava Jato e denunciou que ele não teve direito a um julgamento justo. A própria ONU ratificou que os direitos de Lula foram violados. As manobras do juiz Sergio Moro contra o ex-presidente foram desmascaradas. Lula, preso sem provas, agora inocentado, voltou como mito reforçado.
Um dia antes de entrar na prisão, cercado por uma multidão às portas do sindicato metalúrgico de São Bernardo do Campo onde forjou sua lenda, Lula deixou a seus fiéis seguidores uma de suas imagens mais lendárias. Vestido de vermelho, ele mais uma vez encarnou a figura do sindicalista de base, como um líder que incendeia as massas com frases emocionais. “Sou uma ideia”, “não vão conseguir impedir a chegada da primavera”, sentenciou naquela tarde. A perseguição judicial e midiática que o levou à prisão reviveu a imagem do Lula inicial. E apagou o Lula do acordão.
A campanha eleitoral de 2022 está entrando em seus arranjos finais. As sutilezas acima e abaixo, na macropolítica e na rua, estão se sincronizando. Na penumbra, Lula move os fios, os discursos, as táticas. Enquanto sua história mítica paira sobre a esquerda e os movimentos sociais aliados, Lula busca acordos com o centrão para fortalecer sua candidatura no centro (até mesmo no centro-direita).
Especialmente importantes são as negociações envolvendo candidatos a governos regionais e ao Senado. Lula acaba de fechar um acordo com o centrista Alexandre Kalil, atual prefeito de Belo Horizonte, que será candidato a governador de Minas Gerais, o decisivo segundo colégio eleitoral do Brasil, sem o qual ninguém jamais ganhou a presidência. Por outro lado, Lula planeja uma turnê de Alckmin para tranquilizar ruralistas e banqueiros. Ele chegou a enviar Haddad como diplomata para ganhar o apoio de Marina Silva, a filha rebelde que deixou o PT para fundar o partido REDE Sustentabilidade. Lula quer que ela se envolva, ainda que timidamente, na campanha.
No entanto, Lula está ciente de que sua estratégia macropolítica não funcionará se o povo não fizer sua campanha. Já conta com o apoio de movimentos sociais tradicionais. Mas também espera que as redes, coletivos e ativistas críticos aos últimos governos petistas se juntem ao Lula-lá. Vamos Juntos pelo Brasil precisa reviver o espírito do Vira Voto, a campanha descentralizada em que milhões de brasileiros se envolveram no segundo turno de 2018. As recentes indicações de Lula para o setor cultural podem desencadear uma onda crucial de apoio, já que a maioria dos músicos, atores, grafiteiros e artistas em geral são anti-Bolsonaro.
Campanha afetiva
As cartas da campanha presidencial estão sobre a mesa. Se nas duas eleições presidenciais anteriores houve um terceiro caminho de centro-esquerda (Marina Silva em 2014, Ciro Gomes em 2018), desta vez parece pouco provável. Ciro Gomes – ex-ministro do PT, candidato presidencial em 2018 pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT) – tem intenções de voto muito baixas. No flanco direito, impera a desorientação: a candidatura do juiz Sergio Moro ainda não decolou, o PSDB não está conseguindo aprumar a cabeça e a terceira via conservadora está presa. Tudo aponta para um duelo visceral entre Lula e Bolsonaro.
As promessas eleitorais de Lula-Alckmin serão muito pragmáticas. A história, o desejo, o afeto, a memória prevalecerão. A nostalgia de voltar a um passado melhor, a uma certa ordem pré-pandêmica, a um governo capitalista friendly em que pobres e ricos ganham alguma coisa. “Saudades dos tempos do Lula”, como no jingle Lula voltou. Milhões de brasileiros vão se render ao componente mítico de Lula, ainda que não se enquadre plenamente no legado histórico do PT.
À primeira vista, os dados estão do lado de Lula. O Brasil de Bolsonaro está sofrendo com uma inflação galopante e uma profunda crise econômica. O Brasil é o segundo país do mundo com mais mortes por Covid (mais de 600 mil). A Amazônia está sendo castigada pela pior onda de incêndios em décadas. As minorias estão sendo hostilizadas. O setor da cultura (até mesmo o carnaval), perseguido. Por enquanto, Lula vence em todas as pesquisas, embora seja difícil para ele fazê-lo no primeiro turno.
A batalha eleitoral é, de fato, imprevisível. Porque do outro lado do mito Lula está outro mito: Bolsonaro, autoproclamado mito antissistema, rei das fake news. Os debates televisivos terão pouca relevância (mesmo porque Bolsonaro pode não comparecer). A emotividade prevalecerá sobre a racionalidade, a ideologia ou os programas. Bolsonaro não vai lutar contra Lula com ideias ou promessas. Ele baseará sua campanha em insultos duros, nacionalismo, ódio, religiosidade. Ou diretamente na desinformação. Bolsonaro, o filho rebelde do Brasil, por mais desastroso que seja como presidente e por mais contraproducente que seja para a marca Brasil, ainda é amado por milhões. Sua popularidade permanece em torno de 25%.
Paradoxalmente, o Lula que tece uma frente democrática com seu arqui-inimigo tucano, aquele que evoca uma ordem nostálgica e a união de todos os brasileiros, o Lulinha paz e amor (lema que o levou à presidência em 2002), o patriarca reconciliador, o homem-mito, enfrentará em outubro a extrema polarização que seu próprio partido alimentou durante anos e usou como arma para desmantelar a terceira via de Marina e Ciro, seus filhos rebeldes. (Publicado originalmente no Ctxt – Contexto e Ación, em 22/05/2022)
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Tradução: Halley Margon, não revisada pelo autor. Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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