Tendo em vista seus aproximados três primeiros séculos, consideradas as suas relações externas, com o país e o mundo, o Rio de Janeiro é uma perfeita unidade analítica. Isso porque, como afirma Enders (2015), ele “viveu” esses 300 anos inteiramente na órbita da metrópole portuguesa. A esse respeito, vide os três parágrafos que seguem.
No século XVI, a cidade recebeu escassa atenção da Coroa, posto que ela se interessava fundamentalmente pela costa africana e pelo chamado caminho para as Índias. Internamente, o litoral de São Paulo, onde foi fundada a primeira cidade do país (São Vicente), e o sul, tantas eram as invasões espanholas que ali ocorriam, é que mereceram alguma atenção de Portugal – afora Salvador, a ‘nossa’ primeira capital. Ilustra o anotado, dada a invasão francesa de Villegaignon de 1555, o fato de o Governador Geral das Capitanias do Brasil, Mem de Sá, ter se dirigido para esse lugar apenas em 1558 – ou seja, com um retardo de cerca de três anos.
Não obstante esse comportamento da Coroa, sublinhe-se que o Rio desempenhou nesse século importante papel de paragem para os navios portugueses que se dirigiam – sobretudo – para os aludidos SP e sul do país. Nesses termos, pode-se dizer que ele cumpriu naqueles anos inequívoca função urbano-mercantil e lugar de referência para os portugueses em relação ao restante do território nacional, como sustenta o professor Carlos Lessa (2005).
No século XVII, apesar de serem de pequena monta, ocorreram alguns avanços populacionais, espaciais e econômicos. Daí derivando que além de permanecer polar para a paragem das tropas portuguesas em sua busca por preservar o território brasileiro para Portugal, o relativo desenvolvimento material de então permitiu que o Rio viesse também a assumir o papel de fortaleza militar portuguesa no Atlântico Sul (ENDERS 2015).
No século XVIII, ocorreram saltos mais expressivos que os verificados no anterior nos termos acima assinalados, ou seja, os populacionais, os espaciais e os econômicos. A transferência da capital da colônia para a Cidade do Rio em 1773, embora pouco tenha reverberado para a dinâmica carioca, já indicava sua importância para a metrópole no que concerne à ocupação e controle territorial.
O ciclo do ouro mineiro que explode na segunda metade desse século, diante do contrabando que dele se fazia, especialmente rumo à Inglaterra, levou a metrópole a fechar os antigos caminhos de escoamento, mantendo aberto apenas o do Rio. De outra maneira, o Rio de Janeiro passou a desempenhar a função de elo de ligação da atividade econômica mais importante daquela época com a Europa. É dizer: reforçou-se nesse século a centralidade dessa cidade tanto por conta da anotada importância política interna diante do restante do país quanto, através do próprio Portugal, com a referida Europa.
Confirma-se assim a assertiva de Enders: a vida no Rio nos anos em tela, incluindo as dimensões economia, espaço e poder, era dependente de decisões advindas da metrópole portuguesa. Enfim, transcendendo o Rio, o Brasil dependia de decisões vindas de fora, de longe e de cima, na feliz expressão de Brum (2012). Mas vale reiterar: quando elas chegavam ao país sua porta de entrada era sem dúvida a Cidade do Rio de Janeiro.
No século XIX, acontecem avanços significativos nessa história: para tal, dois fatos merecem destaque: um, a chegada da família real às terras cariocas em 1808; e, o outro, a independência proclamada por D. Pedro I em 1822. Sendo que nesses aproximados 13 anos, não fora bastante, o Rio foi ainda a capital portuguesa.
Em 1834, outro fato também merece destaque: de modo a separar a província da capital do Império, a cidade foi convertida em município neutro. Vale observar, reforçando essa centralidade, que foram então construídas diversas instituições públicas, de cunho nacional, fundamentais para a formação brasileira em geral e, em especial, para a carioca (CARVALHO 1987): Arquivo Militar, Academia de Marinha, Imprensa Régia, Biblioteca Nacional, Escola Médica, Banco do Brasil, Junta do Comércio, Fábrica de Pólvora etc. Acrescente-se na composição desse quadro a criação do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, do tradicional Colégio Pedro II, da Estrada de Ferro D. Pedro II etc.
Foram ainda construídas escolas públicas, abertos concursos públicos para professores, foi inaugurada a primeira escola normal do país, instalado o Instituto Pasteur (1888), criadas casas de saúde etc. Ou seja: ao lado da expansão populacional e espacial, e também da expansão econômica, o Rio foi elevado efetivamente à condição de sede do poder nacional. A esse respeito o mesmo Lessa (2005) assinala que:
“(o) resgate histórico do Rio é a visita à unidade nacional brasileira. Desde o início da Colônia, o Rio, que sempre foi urbano-mercantil, cumpriu papel geopolítico essencial à América portuguesa, em relação ao sul do continente – aonde os espanhóis chegaram antes (…). No século XVIII, as minas das Geraes tiveram seu fulcro urbano regulador. O episódio do ouro, que construiu o interior articulado a partir de Minas, conduziu o Rio para a capitalidade. Com D. João VI e o deslocamento das Cortes portuguesas desencadeou-se o processo pelo qual o Rio, reconfirmado como capital do Reino, foi a primeira ‘Brasília’ do Brasil. Pouco depois, a economia da plantação escravagista e cafeeira, nascida do tecido urbano carioca a partir da densidade mercantil da cidade, criou na Província Fluminense a atividade que deu base ao epicentro político do Império brasileiro. A tendência centrífuga, similar à que no século XIX fragmentou a América espanhola, aqui foi neutralizada pelo peso da capital imperial, pela peculiar forma de Independência e pela defesa do patrimônio escravista. Vale adicionar que em parte do século XIX, diante da evidente debilidade da metrópole portuguesa face os franceses e ingleses ou, caso se prefira, de uma Europa em profunda transformação econômica, com um fervilhar de ideias e crescentes rivalidades, não foram poucos os que viram na colônia um possível futuro grandioso – senão único – para o fragilizado Portugal. Debates políticos na Corte iam nesse sentido. O próprio Marquês de Pombal, o fundador do Estado português, também esboçava esse desiderato. Dessa perspectiva, em coro (…) com Enders, era como se o Rio estivesse saltando da condição de periferia da metrópole portuguesa para a de centro” (p. 11).
No final do século (XIX), o Rio continuava sendo bastante português; no entanto, ele passava a contar então com a presença de outros povos, além dos negros africanos: os franceses, que influenciaram na cultura em geral e, em particular, na arquitetura; e, os ingleses, na oferta de diversos serviços, notadamente dos públicos (gás, eletricidade e telefonia). Além disso, é sabido que nessa “belle époque” tupiniquim, as lutas capitalistas de dominação na escala-mundo passavam ao largo do antigo Império português, e mesmo da Inglaterra que aqui – no entanto – continuava possuindo larga importância, sobretudo no plano da economia.
Do ponto de vista interno, embora o Rio fosse o lugar no qual as grandes questões nacionais eram discutidas e disputadas não se pode esquecer do crescimento econômico de outras regiões e do peso político que algumas delas passaram a assumir. Explicando melhor: se era fato que elas não apresentavam protagonismo de natureza hegemônica em relação ao Rio de Janeiro, dada a sua importância cultural e ideológica, São Paulo, por exemplo, já anunciava seu predomínio material-produtivo e tecnológico e as oligarquias regionais ‘pesos’ políticos nada desprezíveis.
Isto posto, na entrada do novo século (XX), reiterando, em que pese o crescente predomínio da economia paulista, nascido da relação dinâmica café-indústria (CANO 1977), e do avanço político das oligarquias regionais, vale acompanhar Lessa mais uma vez:
“O Rio, utopia concebida por frações das elites brasileiras e orquestrado pelo Estado, é produto da República Velha. Sem aprofundar por agora a questão, recorde-se o complexo de inferioridade brasileiro ao findar do século XIX. O Brasil havia sido o último país escravagista do Novo Mundo; a República, aqui, fora implantada com notável atraso em relação aos vizinhos americanos; nossa matriz histórico-cultural nos remetia a Portugal, pequena sociedade estagnada e pobre, exceção numa Europa próspera, em pleno desenvolvimento industrial. O passado nos condenava. O país teria que ser construído…
Ciência aplicada e concreto armado foram os ingredientes preferidos para a construção do edifício republicano, em vez da franquia política da consulta à cidadania. Era necessário repudiar simbolicamente o passado colonial da capital: negar seu formato urbanístico, apagar tipologias arquitetônicas dominantes e inovar padrões comportamentais na velha cidade. Era cancelar o estigma colonial e entrar na modernidade, atestando a reconstrução do Rio, o vigor potencial da civilização brasileira. O Rio como projeto e sonho foi naquela virada de século a condensação do progresso, tendo na largura das avenidas, na opulência dos bulevares, no faiscar da iluminação noturna e na circulação elegante pela Avenida Central, a atual Avenida Rio Branco, a sua comprovação inequívoca. A população nas calçadas seria a demonstração concreta da modernidade do brasileiro. A República fez do Rio o espelho da nação com futuro feito presente”. (p. 12-13).
De outra maneira: é fato que São Paulo ensaiava os primeiros passos no sentido da sua afirmação como polo decisivo da modernização econômica, centrada na industrialização (que se estenderia até o final dos anos 1970). E.g., face os termos gramscianos referidos (predomínio e hegemonia), esse estado apontava desde ali para a sua dominação, como assinalado antes, de natureza material, produtiva e tecnológica. Porém, ele o fazia sem conseguir igualmente se afirmar no plano dos valores simbólicos, da hegemonia cultural. Em suma: seus valores não se afirmavam nacionalmente e sim os do Rio, como ensina o mestre Francisco de Oliveira (1994).
Portanto, o Rio continuava sendo uma espécie de cartão de visita do país e certidão de brasilidade, um lugar único, posto conciliar sua histórica centralidade nacional, modernidade urbana e notável beleza natural tropical. Essas funções eram sobremodo facilitadas na medida em que ele não possuía interesses regionais, podendo assim desempenhar o papel de síntese do Brasil pós-colonial.
Afora o anotado, o Rio de Janeiro não discriminava os brasileiros de outros estados e regiões na medida em que não subestimava o Brasil e tampouco intimidava o restante da nacionalidade com sua evidente capitalidade – coisa que São Paulo, por não ser hegemônico, sempre o fez ou pelo menos tentou fazer. Enfim, esse período assinalou um longo caso de amor que, infelizmente, tanto para o Rio como para o país, como se mostrará, começou a ‘fazer água’ nas últimas duas décadas do século passado.
Rapidamente, o Rio fétido, dos cortiços e epidemias do Brasil colonial e imperial, pareceu reviver. Não enquanto tal, mas como sinônimo de Rio de Todas as Crises, como expresso por Dain (1991). Envolvido em todas as crises possíveis (a econômica, a política, a social e a institucional), o Rio de Janeiro foi perdendo seu lugar de signo e utopia de uma possível nação civilizada e mestiça nos trópicos (cf. Gilberto Freire e Darcy Ribeiro). O Rio é então seriamente desvalorizado. Esse processo foi desde a crítica às estatais brasileiras, muitas delas situadas no Rio, até à tese defendida por um presidente da república (Fernando Henrique Cardoso) de que era preciso virar a página getulista da história brasileira, tão marcadamente presente na cidade.
Independentemente de qualquer juízo de valor, em seu lugar, nos anos 1990, foi erigido o pior dos mundos: o ideário perverso e tosco do mais mercado e menos Estado, ignorando valores e crenças socialmente construídos na perspectiva de uma nação mais justa, solidária e economicamente dinâmica que – como se sabe – tinha na cidade do Rio de Janeiro, ainda que de maneira ideológica e idealizada, seu lugar por excelência. Não é para menos, afinal esse novo ideário, tornado hegemônico, foi cimentado pelo chamado mercado e não por valores construídos a partir de dentro, da nação brasileira, posto se conectar diretamente aos interesses individualistas tão presentes nos EUA – e, naquele momento, não fora bastante, imbricado com a forma mais avançada e abstrata de existência do capital, o financeirizado.
Nessa quadra histórica, em que o poder político se uniu definitivamente ao econômico, polarizando de vez o desenvolvimento nacional no espaço paulista, o resgate do Rio enquanto signo e concreção de valores como os antes apontados passou, definitivamente (?), a se mostrar tarefa hercúlea. Mas que deve ser enfrentada! Para o bem do Brasil, e não apenas do Rio, uma vez que a cidade em questão é uma especialíssima questão regional, federativa e simbólica do e para o país (apesar de todas as suas mazelas).
Consideramos os últimos anos do século XX – em larga medida – um ponto analítico de chegada. Isso porque ali foram posicionados os elementos centrais da problemática do desenvolvimento nacional, dado que ao fim e ao cabo, em raros momentos eles foram de fato combatidos nos anos que se seguiram. De outra maneira: a necessária reconstrução do país passa pela retomada da capacidade soberana então perdida de fazer políticas públicas, destacando-se aí as de natureza econômica, face às forças contemporâneas do capital financeirizado e o centro capitalista mundial.
Nesses termos, concluindo, por conta da história longeva de capitalidade do Rio diante do país e da sua ‘marca’ mundial, entendemos que o Rio ainda possua alguma capacidade de cumprir papel decisivo nesse processo – quando mais não fosse porque ele, intencionalidades à parte, foi o laboratório por excelência dos ventos destrutivos neoliberais fincados nos anos 1990!
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Referências Bibliográficas:
BRUM, A. O desenvolvimento econômico brasileiro, Vozes, 2012; CANO, W. Raízes da concentração industrial em São Paulo, Difel, 1977; CARVALHO, J.M. de. Os bestializados – O Rio de Janeiro e a república que não foi., Companhia das Letras, 1987; ENDERS, A. A história do Rio de Janeiro, Gryphus, 2015; LESSA, C.O Rio de Todos os Brasis – uma reflexão em busca da autoestima, Record, 2005; e, OLIVEIRA, F de. A hegemonia inacabada, EAE/USP, 1994.