Neste artigo, o que quero enfatizar é uma outra crise que será cada vez mais impactante no futuro. Trata-se de um dos efeitos mais importantes do aquecimento global: o aumento do nível dos oceanos, provocado pelo derretimento das calotas polares e da massa de gelo da Groenlândia.

É possível estabelecer uma relação entre o aumento em curso do nível dos oceanos e a catástrofe gaúcha? Embora não existam medições sobre variações do nível do mar na ligação entre a lagoa dos Patos e o Atlântico Sul, pode-se constatar um fato inegável: o escoamento das águas da inundação está represado neste ponto. Aponta-se para o efeito de ventos fortes que elevam o nível das marés, bloqueando o escoamento do excesso da água acumulado nas bacias do Guaíba e outros rios menores que desaguam na lagoa. Alguns aventaram a possiblidade do assoreamento do canal de ligação com o mar, mas outros avaliaram que mesmo a ampliação da comunicação para dez quilômetros não aceleraria o esvaziamento. A única explicação para tal avaliação seria o nível do mar estar muito alto.

A própria natureza de uma lagoa é o vai e vem das marés, enchendo-a e esvaziando-a. Acresce-se a isso o fato de que a lagoa é o delta de rios que, nas enchentes, como a atual, se tornam muito caudalosos. Neste caso, o escoamento fica, naturalmente, mais lento.

A elevação do nível do mar, fenômeno provocado pelo aquecimento global e que vem se acelerando nas últimas décadas, vai provocar, se é que já não está provocando, a criação de um impedimento permanente no escoamento da lagoa e de seus afluentes. O nível histórico de inundação da lagoa é de três metros, a partir do qual ela extravasa e inunda os terrenos vizinhos, inclusive cidades como Pelotas. O aumento do nível do mar nesta região pode chegar a dois metros até meados do século na versão mais pessimista ou no fim do século, na versão mais otimista. Entretanto, é bom lembrar que este nível é uma média entre as marés alta e baixa ao longo de um ano. Nos períodos das marés mais altas, ditas “marés vivas”, o nível pode ser muito superior ao de inundação. E, é claro, a força de ventos pode ampliar este efeito, como já se constatou presentemente.

O que esperar do aumento dos oceanos de forma mais geral?

Comecemos por lembrar que as atuais temperaturas médias do planeta são superiores às registradas ao longo da história desde o fim da última era do gelo, há18 mil anos atrás. As temperaturas médias hoje registradas estão acima das verificadas entre 116 mil e 129 mil anos atrás, período batizado pelos cientistas como Eemiano.

As causas do aquecimento no Eemiano são distintas das atuais. Os níveis de CO2 na atmosfera eram de 135 ppm, enquanto hoje estamos com níveis três vezes maiores e aumentando rapidamente. Entretanto, um dos efeitos do aquecimento, independentemente da causa, foi o degelo nos polos e, sobretudo, na Groenlândia. A má notícia para nós nesta comparação com o passado é que o nível dos oceanos naquele período era de seis a dez metros superior ao nível atual. E por que não estamos no mesmo nível? É, infelizmente, apenas uma questão de tempo. Isto ocorre porque o nosso aquecimento atual e o consequente degelo são muito recentes e estão ainda em processo, embora muito acelerados.

Este passado remoto não aponta para o nosso presente, mas para o nosso futuro. O que importa agora é o ritmo deste degelo, que vai indicar o ritmo do aumento do nível dos oceanos. Quando é que a água do mar vai alagar o sertão, como cantado por Sérgio Ricardo em Deus e o Diabo na Terra do Sol? As previsões mais prováveis indicam uma subida do nível médio dos oceanos da ordem de 2 metros até 2100, mas as mais pessimistas apontam para até três metros a mais, dependendo do ritmo do degelo, com os dois metros sendo alcançados, possivelmente, em meados do século.

O ritmo do degelo é não só muito acelerado, mas cresce em progressão geométrica. Apenas entre 1998 e 2018 o degelo cresceu 500% e já abarca toda a área da Groenlândia, inclusive a mais fria, perto do polo norte. Uma pesquisa de 2012 indicou que 98,6% de toda a massa de gelo desta região alcançou temperaturas acima de zero graus no verão, indicando um degelo generalizado.

A pior notícia é que o aquecimento das massas sólidas e líquidas do planeta não ocorre simultaneamente com o aumento da temperatura média. Há um delay entre um e outro fenômeno, o primeiro sendo mais lento do que o segundo. Se todas as emissões de GEE fossem interrompidas hoje, por um passe de mágica, o aquecimento produzido pelos gases já emitidos continuaria por muito tempo, com o consequente degelo e aumento do nível dos oceanos. E existe já a certeza de que as massas de gelo, pelo menos na Groenlândia, alcançaram um ponto de virada (tipping point), que vai provocar um derretimento irreversível.

Um estudo concluído no início da década de 2010, adotando a hipótese mais otimista de um aumento do nível dos oceanos da ordem de 1,5 metros até 2100, indicou os impactos prováveis, humanos e econômicos. As estimativas apontaram para a necessidade de se deslocar cerca de 80 milhões de pessoas das áreas costeiras mais vulneráveis, incluindo países como a China, Bangladesh, Egito, Índia, Filipinas, Estados Unidos e o Vietnam. E pelo menos 136 megacidades correrão o risco de serem alagadas, pelo menos parcialmente, com custos dos danos estimados em 1,4 trilhões de dólares por ano no final deste século. O custo de medidas de controle do avanço do mar, apenas calculado para os Estados Unidos, chegaria a 400 bilhões de dólares em muros de contenção nos próximos 20 anos. Lembramos ainda que estes aumentos são contínuos, de modo que, ano após ano, as águas vão subir em todo o mundo, de forma desigual em volume e ritmo, até chegar aos resultados indicados acima. E com o calor acumulado na atmosfera e nos oceanos este processo vai continuar por séculos.

Não existem estudos, ao que eu saiba, estimando o impacto futuro do avanço do mar no Brasil, mas dada a enorme concentração da população em áreas costeiras podemos esperar uma catástrofe nas mesmas proporções das descritas acima. As regiões metropolitanas litorâneas como Porto Alegre, Florianópolis, Rio de Janeiro, Vitória, Salvador, Aracajú, Maceió, Recife, João Pessoa, Natal, Fortaleza, São Luiz e Belém estarão sujeitas a alagamentos em marés mais altas e, mais adiante, de forma permanente. Lembremos que o Rio de Janeiro tem toda a sua zona sul, o centro e a baixada fluminense em áreas aterradas, resgatadas do mar.

Além disso, é preciso prever o impacto deste aumento do nível do oceano Atlântico no escoamento de grande parte dos nossos rios. O efeito de represamento das águas dos rios será o de expandir os deltas e as calhas dos rios, alagando terras agricultáveis, reservas naturais e cidades ribeirinhas e eliminando as nossas praias. Teremos pororocas multiplicadas por toda parte e a salinização dos rios ao longo de trechos mais ou menos longos a partir dos deltas.

Na região Nordeste, o risco de uma intrusão de água salgada até quilômetros terra a dentro é muito real. Lembremos que esta região já esteve sob o mar há alguns milhões de anos, emergindo por movimentos tectônicos do continente e a diminuição do nível do mar com a formação das geleiras nos polos e na Groenlândia. O degelo em curso vai trazer o mar de volta.

O sentido comum tem dificuldades de conceber alguns dos elementos básicos da crise climática provocada pelo aquecimento global. É frequente ouvirmos de pessoas pouco informadas que “um aumento de um ou dois graus na temperatura do planeta não é nada.” Afinal de contas, vivemos com variações de temperatura muito maiores entre mínimas e máximas a cada dia e a cada estação do ano. Em lugares mais frios há quem esteja torcendo pelo aquecimento global.

Esta visão incorreta tem a ver com a percepção do aumento da temperatura média do planeta como se ele fosse o mesmo para cada ponto da Terra. Obviamente, não é o caso. O 1º C a mais registrado em 2015, na comparação com as temperaturas médias de meados do século XIX, ou os 1,5º C registrados em alguns dos últimos meses são a média dos aumentos (e até algumas quedas) de temperatura de todos os pontos do planeta ao longo do tempo. O importante a notar é que o aumento de 1º C já provocou uma enorme perturbação no clima e cada meio grau vai gerar mais catástrofes, sendo que os efeitos não são aritméticos, mas geométricos. Cada aumento da temperatura tem impacto muito maior do que o anterior.

Na etapa atual, estamos constatando o aumento dos eventos climáticos extremos: tempestades, secas, ondas de calor, tufões e tornados. Eles são mais frequentes e, sobretudo, muito mais intensos e extensos. A cada década há mais eventos e mais graves, sempre acelerando. Mas, com o contínuo aumento das temperaturas, podem ocorrer situações muito mais dramáticas com radicais modificações nos fatores que influenciam o clima e alterando tudo aquilo que conhecemos.

Para dar um exemplo do desregramento do clima, aparentemente contraditório: o aquecimento global pode levar a uma mini era do gelo na Europa. Isto tem a ver com o degelo da Groenlândia, provocado pelo aquecimento global, que está lançando bilhões de toneladas de água doce no mar do Norte, alterando a salinidade da água ao longo da costa atlântica do continente europeu. Os cientistas sabem que o efeito desta dessalinização é o de alterar o fluxo da corrente do Golfo, que leva água quente do trópico para o Atlântico nordeste, permitindo a existência de um clima temperado nesta parte da Europa. Sem isso, a costa oeste da Europa seria tão gelada como a Groenlândia, o Labrador e o nordeste do Canadá. Este efeito de resfriamento será temporário, até ser eliminado pelo processo global de aumento de temperatura. Em outro exemplo das peculiaridades do processo do aquecimento global, as regiões mais frias e cobertas de gelo estão se aquecendo mais rapidamente do que os trópicos. E, de modo mais geral, é sempre bom lembrar que os oceanos se aquecem muito mais lentamente do que as terras e, é claro, o ar.

Exemplos como os apresentados acima abundam pelo mundo afora e ano após ano, década após década. Cada vez mais ocorre o que se chama de “desregramento do clima”.

Ao longo dos milhões de anos da existência do planeta, inúmeros fatores, desde as relações com o sol, alterações na órbita da Terra, atividades vulcânicas e outros, até a existência de inúmeras formas de vida, foram moldando o que chamamos de clima. Estes fatores estão em permanente alteração, em si e entre si, provocando muitas mudanças no curto, médio e longo prazo. Mas mudanças afetando todo o planeta ocorrem em prazos longos e um relativo equilíbrio dos fatores permitiu que a ciência fosse capaz de prever os eventos climáticos com razoável e crescente precisão, pelo menos até a ação humana ter provocado aceleradas alterações em vários dos fatores cuja ação, isolada e combinada, define o clima.

O impacto da ação humana começou há uns 70 mil anos, mas o impacto mais profundo e acelerado se deu a partir da segunda metade do século passado, quando a expansão do capitalismo gerou o que se chamou de grande aceleração nas mudanças climáticas. E agora estamos diante de um terreno perigoso, onde as alterações de cada um dos ditos fatores e de suas correlações podem tornar o futuro imediato e de longo prazo imprevisíveis e, provavelmente, caóticos.

Todos nós temos a tendência de observar tragédias na vida dos outros como se fossem abstrações. E quanto mais distantes, mais abstratas se tornam. É quase como se fossem ficção. Quando as imagens na televisão impactam muito, o incômodo dura alguns dias ou horas. Mas catástrofes fora do território nacional dificilmente provocam grandes movimentos de solidariedade. E este distanciamento foi ficando mais marcante com o passar dos anos. Ondas de calor assassinas na Europa, Estados Unidos e Rússia; inundações catastróficas no Paquistão, Bangladesh, China e Índia; furacões arrasadores nos Estados Unidos; secas devastadoras na África e na Ásia. Estes foram alguns dos eventos climáticos extremos que afetaram um bilhão de pessoas nos últimos 10 anos. Quem se lembra?

Quando eu era garoto, participei de um grupo de voluntários na igreja da paróquia onde morava, no Flamengo. “Orós precisa de nós”, proclamavam os cartazes e os padres. Gêneros não perecíveis, roupas e não sei mais o quê eram coletados e empacotados no salão paroquial por dezenas de colaboradores e isto se repetia onde quer que houvesse uma igreja católica – as evangélicas eram raras nos anos cinquenta. Esta ajuda era enviada para o Ceará, onde o açude gigante de Orós, no rio Jaguaribe, tinha desabado, inundando vários vilarejos com mais de mil vítimas fatais.

Desastres mais recentes, como as chuvas torrenciais na serra dos Órgãos, em Petrópolis, Teresópolis e Friburgo, anos atrás, não geraram um movimento solidário nem de longe tão amplo como o citado acima. Idem a tragédia de São Sebastião, no litoral paulista. Ou ainda as inundações ocorridas na Bahia em 2021. A lista é longa e a memória, curta. Outros eventos extremos também se sucederam no Brasil nos últimos anos, sobretudo secas mais frequentes, intensas e prolongadas em toda parte, inclusive na Amazônia, além daquelas estiagens habituais do semiárido nordestino (e que deixaram de ser “habituais” para se tornarem catastróficas).

Quando será que acordaremos para a catástrofe generalizada iminente?

Sabemos que é preciso eliminar a emissão de GEE e isto implica em substituir os combustíveis fósseis em todo o mundo o mais rapidamente possível, eliminar os desmatamentos e queimadas e reflorestar maciçamente áreas degradadas (no Brasil, pelo menos 80 milhões de hectares) e, no que toca o agronegócio, reduzir em 50%, pelo menos, a criação de gado bovino. Existem outras medidas importantes a serem tomadas, inclusive no que diz respeito ao modelo de produção agropecuário, como o uso de adubos químicos nitrogenados. Estas medidas vão cobrar mudanças radicais no modo de vida e de consumo de todos, de preferência nivelando a pegada energética e de carbono de ricos e pobres, fazendo justiça pela eliminação das desigualdades gigantescas que marcam a nossa “civilização” atual, moldada pelo capitalismo.

A possibilidade de determos o nível dos oceanos nos seus valores atuais não existe, mas podemos limitar o aumento e torná-lo mais lento, permitindo um esforço de adaptação da humanidade. Mas as medidas apontadas acima terão que ser adotadas por todos em todo planeta e muito rapidamente. Segurar o nível dos oceanos em apenas dois metros acima do atual (efeito já garantido pelas emissões de GEE já ocorridas) vai ser difícil, mas ainda é possível. Resta saber se estamos preparados para enfrentar as dificuldades das radicais mudanças no modo de vida e de produção que hoje predominam ou se vamos avançar na direção do tsunami que já está anunciado.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
Leia também “RS: um planejamento de construção na catástrofe“, de Tarso Genro.