Jerônimo entrou como esperado, apesar do pequeno atraso. Os presentes faziam cara de tristeza, o que combinava perfeitamente com a frieza e a sisudez mórbida do ambiente. O único sorriso no ambiente estava estampado justamente na cara de Jerônimo. Um sorriso largo, meio sacana. Sorriso de malandro. Sorriso cínico. Sorriso profundamente irritante para todos os que ali fingiam alguma tristeza.
O sorriso sequer parecia combinar com o próprio Jerônimo. Passou por momentos bem difíceis na vida. Daqueles que ensinam mais a chorar do que a sorrir. Também era do tipo pacífico, mais na dele, que dificilmente tomaria uma atitude afrontosa daquelas. No entanto, o sorriso estava lá, petrificado naquela cara que usualmente estampava feições duras. O sorriso irônico também não combinava com o estilo direto de Jerônimo. Estilo que lhe rendeu ao longo da vida o desafeto de todos que estavam ali naquela sala. Não fosse pelo seu dinheiro, aquela gente nem lhe olharia na cara.
O dinheiro de Jerônimo era desejado por aquela gente como o próprio nunca fora. Esposa, filhos, amigos, ninguém amava Jerônimo. Não de verdade, não por quem ele era, apenas pelo que ele tinha. Também é verdade que Jerônimo também não amava nenhum deles. Não amava ninguém. Ele só amava a si mesmo e ao seu dinheiro. Seu sagrado dinheiro. Conquistado com o suor do rosto dos outros. Dinheiro arrancado da miséria dos outros e que, por isso, era só seu.
Passado o choque natural da entrada de Jerônimo, começou-se a especulação do que significava aquele sorriso. “Desdém”, apostou a filha que nunca superou a rejeição do pai.
“Felicidade? Não pode ser… Esse canalha nunca foi feliz na vida, vai ser agora?”, pensou a ex-esposa que nunca foi feliz no casamento. E nem depois dele.
“Sarcasmo, aposto que está com vontade de mandar todo mundo aqui pro quinto dos infernos”, pensou com sorriso irônico o genro que a família sempre fez questão de lembrar que não era da família.
“Esse mesquinho sempre se achou melhor do que todo mundo… Tá rindo do quê?”, matutou o filho soberbo que sempre achou que tudo que tem na vida foi por mérito seu.
O advogado estava bastante constrangido com aquela reunião sinistra. Olhava a todos como se pudesse ler os pensamentos daquela gente. Como se acordasse de repente, apressou-se em iniciar as formalidades.
“Confesso que essa reunião é muito constrangedora para mim, mas essa foi a última vontade de Doutor Jerônimo, a leitura de seu testamento com seu corpo presente”. Suspirou como quem se lamenta por estar ali e continuou.
“Vou ser direto. O testamento é bem simples. E ele determinou que fosse lido na sequência desse recado: odeio todos vocês…”. O advogado ruboresceu como se aquela frase fosse sua, principalmente porque era o que ele realmente gostaria de dizer àquela gente.
“Deixo a totalidade dos meus bens para o único ser que, realmente, me amou, meu cão Baco…”.
“Miserável!”, “canalha!”, “babaca!”, todos o xingavam ao mesmo tempo. O advogado teve a impressão de que, naquele momento, o sorriso de Jerônimo ficara mais largo, mais sorriso, mais feliz. “Ele está feliz, feliz!”, deixou escapar baixinho, imperceptível em meio à gritaria.
Concluiu que aquela era uma alegria genuína. Só não sabia dizer se era por causa do alívio de não mais viver uma vida vazia ou pela alegria de ver aquela gente se descabelando por suas vidas vazias.
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Ilustração: Mihai Cauli
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