Mihai Cauli

No século XVIII, no dia 9 de março de 1762, Jean Calas, protestante, foi assassinado em Toulouse na França acusado de ter matado um de seus filhos. Calas era um homem de 68 anos, negociante, estimado na cidade, e seu filho Marc-Antoine muitos anos antes havia se convertido ao catolicismo. Marc passou por uma grande depressão e se matou; logo um católico enraivecido acusou o pai de havê-lo morto por ódio à sua conversão ocorrida muitos anos atrás. Voltaire, que a época já era um escritor famoso, ficou impactado com a crueldade e escreveu o “Tratado sobre a Tolerância”, pois estava convencido da inocência de Calas. Seu livreto é um manifesto contra toda forma de intolerância, no qual descreve como 13 juízes concluíram um processo em que não havia provas contra o acusado. Três anos após ser morto, Jean Calas foi inocentado, e os juízes que o condenaram não foram julgados, como é comum ocorrer na História.
Entretanto, Goethe, já no início do século XIX, dá um passo à frente de Voltaire na sua crítica à tolerância: “A tolerância deveria ser uma atitude apenas temporária: ela deve conduzir ao reconhecimento. Tolerar significa insultar”. O reconhecimento do outro é aceitar a diferença, respeitar o contraditório, e não só tolerar. Os intolerantes contam só até UM, excluem o outro, excluem a diferença. O exemplo mais recente é o que ocorre com os chorosos raivosos que perderam as eleições no Brasil. Se sentem desamparados, injustiçados, não suportam a derrota, desprezam a democracia. Invocar liberdade para dar golpe é como defender a liberdade de matar, no caso matar a democracia. Uma sociedade tem leis, tem constituição, há deveres e obrigações para pessoas e poderes.
Os autoritários só contam até UM, e não até dois como ocorre com o princípio do contraditório. A lógica dos que contam até UM é a de serem os únicos donos do Brasil, donos da bandeira, donos do hino, donos das florestas que destroem, donos de tudo. Os autoritários são essencialmente narcisistas com viés paranoico, não suportam a diferença, projetam o mal, o diabo nos nordestinos, na esquerda, na Justiça que defende as leis e a democracia.
A rejeição narcísica da diferença se expressa também no machismo, em que os homens desprezam e maltratam as mulheres, como fez tantas vezes o atual ex-presidente. O narcisismo das pequenas diferenças, introduzido por Freud em 1918, está na raiz do racismo, do nazismo, no ódio aos nordestinos. No Brasil, hoje, os nordestinos são os judeus desprezados e perseguidos na História, ou os negros e os índios de ontem e hoje. O fanatismo não cede à razão, não tolera a diferença, e por isso só contam até UM. Os armados e seus aliados civis da classe média, junto com parcela de empresários e do mercado, estão brabos, é preciso entendê-los. Pensavam mandar sozinhos no País, não querem perder seus privilégios e buscam destruir o governo de Frente Ampla que vem se formando.
Não vivemos isolados, a democracia está ameaçada aqui e no mundo, mas a vitória dos democratas norte-americanos no Senado é um alento. O mundo apoiou e festejou a grande vitória da liberdade no Brasil. A transformação saudável do narcisismo está nas artes, na solidariedade, na empatia, no bom humor. Vamos festejar a LIBERDADE E A DEMOCRACIA, o país está cansado de ódio e guerra, precisamos de amor ao povo brasileiro.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.

Ilustração: Mihai Cauli Revisão: Fernanda Novaes

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