Análise sobre o papel do Supremo Tribunal Federal na política brasileira

Deve-se aproveitar a reação legalista da cúpula do Judiciário, para manter o sistema de justiça no leito de que não se deveria ter desbordado

No artigo anterior, depois de ressalvar as ações mediante as quais, com firmeza e habilidade, o STF e os Tribunais Superiores tornaram-se, nos dois últimos anos, o principal obstáculo aos arreganhos golpistas dos neofascistas, liderados por seu “mito”, garantindo inclusive a realização da eleição presidencial e a posse do candidato adversário vencedor, tratou-se de relembrar também a contribuição do sistema de justiça, no período imediatamente anterior, ao avanço autoritário que marcou a trajetória política recente do país.

A propósito, cabe examinar como o próprio Supremo, infelizmente, colaborou neste processo. Isto se deu especialmente em dois momentos cruciais, o primeiro deles ao convalidar o processo de impedimento ilegalmente desfechado contra a presidenta Dilma Rousseff, malgrado a manifesta ausência do requisito jurídico exigido para tanto. Com efeito, o alegado ato de improbidade que lhe foi atribuído – as tais “pedaladas fiscais” – não passou do remanejamento de disponibilidades financeiras do Tesouro, expediente corriqueiro, realizado visando ao atendimento pontual de compromissos para o custeio de gastos sociais, prática habitual que, quando muito, consistiria em mera irregularidade.

A anuência do Pretório Excelso ao processo viciado de deposição de Dilma – sob a alegação inconsistente de sua adequação formal à legislação de regência – terminou, destarte, por efetivar o célebre mote dos golpistas, flagrado em conversa de Romero Jucá com outro articulador da tramoia montada no Parlamento: “…com o Supremo, com tudo…”. Note-se que, mesmo antes de avalizar o processo ilegítimo de impeachment, o Tribunal já chancelara o escandaloso vazamento, pelo inefável juiz Moro, de conversas por ele ilegalmente violadas entre a presidenta e Lula – conversas estas usadas para impedir a nomeação deste como ministro-chefe da Casa Civil, como última tentativa de impedir aquela manobra.

E prosseguindo nesta senda, já em 2018, seus integrantes, por apertada maioria, deram o empurrão que faltava para o triunfo definitivo do golpe “blando”, como os autores de língua espanhola denominam aquele que, em vez de tanques e soldados, utiliza parlamentares e magistrados, de molde a preservar, aparentemente, a chamada “cláusula democrática”.

De fato, ao negar, por seis votos a cinco, habeas corpus impetrado em favor de Lula, a Corte terminou ensejando nos dias seguintes sua prisão e consequente alijamento do processo eleitoral, em que era franco favorito. Ao fazê-lo, o Supremo deu as costas à posição ali tradicionalmente prevalente acerca da presunção de inocência, conquista civilizatória inscrita, como princípio fundamental, na Constituição Federal. Felizmente, pouco tempo depois voltou à antiga orientação sobre o tema, mas um dano irreparável já estava produzido: o maior líder popular brasileiro ficou preso 580 dias, em virtude de condenação proferida em processo criminal nulo, pela suspeição e incompetência absoluta do juízo, como o próprio STF se encarregou de demonstrar pouco tempo depois.

Esta foi a segunda, maior e mais lamentável colaboração por ele emprestada ao processo autoritário em curso no país, que logo atingiria seu ápice com a eleição à presidência da República de um completo despreparado – conhecido por suas inclinações fascistas e racistas, misóginas e homofóbicas. A propósito, cabe recordar, sempre, os enormes malefícios infligidos à nossa jovem e frágil democracia pelo (des) governo desastroso, instituído em decorrência da legitimação judicial das artimanhas parlamentares que abriram caminho à sua eleição, após o afastamento de uma presidenta legítima e a prisão ilegal do candidato majoritário.

Diga-se também que seus mentores indiretos, os eternos donos do poder, não podem sequer alegar desconhecimento. De fato, tão logo assumiu o cargo, o inominável personagem confessou publicamente o objetivo central de seu governo, em fala patética num jantar promovido, na Embaixada brasileira em Washington, em homenagem ao seu guru astrólogo: torcendo bisonhamente um guardanapo em suas mãos, declarou, candidamente, que sua missão era fácil – pois não consistia em construir algo, mas sim em destruir o que fora feito no Brasil nos últimos 30 anos.

E para tanto, ele e sua corja, dedicaram-se com empenho e fervor aos estragos, quando não à destruição pura e simples dos avanços e conquistas obtidos pelo país, em todos os domínios, desde a economia até a saúde – nesta  em especial, pela contribuição ativa e omissiva para o alastramento criminoso da Covid-19, com a produção de milhares de mortes, seja pelo boicote às medidas preventivas preconizadas pela Organização Mundial da Saúde, seja pela recusa inicial, e posterior atraso na compra de vacinas.

O mesmo ocorreu também na educação, na qual uma sucessão de ministros ineptos dedicou-se a reduzir verbas para Universidades e institutos de pesquisa, hostilizar professores e alunos, destruir políticas públicas exitosas e, claro, locupletar-se do erário. Sem falar na área da cultura, na qual, entre outras façanhas, foi entronizado de saída um titular da pasta adepto de Goebbels, ao depois substituído por um ator subdotado intelectualmente, além da indicação de dirigentes para esvaziar e sucatear fundações, institutos e órgãos culturais federais.

Impende também salientar de modo especial os imensos e irreparáveis desastres provocados ao meio ambiente, reveladores dos nítidos interesses do ex-governante e seu bando miliciano em “abrir a porteira” aos contumazes destruidores da Amazônia, do Pantanal e do Cerrado – as organizações criminosas que exploram garimpos ilegais, contrabandeiam madeira e traficam drogas e armas. Não se pode deixar de registrar, também, as políticas de estímulo ao armamento generalizado e indiscriminado da população e à violência policial que, como sói acontecer, acarretaram o incremento de prisões e mortes entre as populações periféricas, sobretudo de jovens, pobres e negros, alvos tradicionais da repressão seletiva do aparato punitivo estatal.

Evidentemente, não se há de atribuir ao sistema judicial como um todo, tampouco ao Supremo Tribunal Federal e, muito menos pessoalmente a seus integrantes, este rol de barbaridades – incentivadas e promovidas que foram, quando não cometidas diretamente pelo chefe do Executivo e sua súcia. Trata-se apenas, o que é bem diferente, de destacar a responsabilidade política das instituições públicas brasileiras, inclusive as judiciais, pela instalação de um perverso projeto de poder – para cujo sucesso contribuiu decisivamente a tolerância que tiveram com suas crescentes investidas, tudo em nome do “combate à corrupção”.

Da mesma forma, interessa examinar a reviravolta ocorrida nos Tribunais Superiores, especialmente no Supremo, em relação às contínuas e cada vez mais graves ameaças de golpe proferidas pelo então presidente da República. Parece razoável situá-la no final do ano de 2021, quando da resposta, firme e dura, que os ministros da Suprema Corte, logo secundados pelas principais lideranças do Parlamento, deram aos discursos golpistas proferidos pelo grotesco governante, em Brasília e depois em São Paulo, nas comemorações do 7 de setembro daquele ano.

Lembre-se que tais falas ameaçadoras foram preparadas, nos meses anteriores, pelo chamado “gabinete do ódio”, e disparadas diuturnamente pelas redes virtuais, veículos preferenciais da mobilização do rebanho bolsonarista. Confrontado com a forte reação das instituições – e sabedor de que não contaria com apoio parlamentar e midiático, tampouco militar, à aventura golpista ameaçada – o tosco personagem recuou, à moda dos pusilânimes, socorrendo-se da figura onipresente de Michel Temer, que lhe fez enviar uma carta lamentável de desculpas às autoridades ofendidas.

Desde então, desvelada a inconsistência de seus arroubos autoritários, e diante das recaídas inevitáveis, típicas das lideranças fascistóides, sucederam-se diversas providências tomadas, principalmente pelo STF e pelo TSE, conforme já referido na primeira parte deste artigo, de modo a garantir a realização regular do pleito presidencial no ano seguinte, bem como a posse do candidato vencedor – condições essenciais para o restabelecimento pleno da democracia no país.

A propósito, seria talvez simplista explicar a mudança de atitude em relação às assacadilhas do Boçal e seus acólitos, apenas por terem as mesmas como alvos preferenciais o Pretório Excelso e alguns de seus integrantes. Claro que isso, a partir dos episódios do Dia da Independência de 2021 – escolhido para desencadear o ameaçado putsch – pesou para a reação institucional, tão necessária, mesmo adotada com evidente atraso.

Contudo, para bem compreender a oscilação de suas posições em relação ao governo passado, deve-se ir além, considerando a natureza política, no sentido genuíno da palavra, das instituições judiciais em geral, as quais, como importantes estruturas de Estado, atuam prevalentemente no sentido da preservação, legitimação e reprodução da ordem vigente – ordem esta que é, não se esqueça, de dominação política e econômica.

Ademais, os magistrados brasileiros, em sua franca maioria, são conservadores, tanto pelos extratos sociais médios e altos de que são oriundos, quanto por sua formação profissional, reprodutora da ideologia dominante. Não por outra razão, no cumprimento de suas atividades precípuas de mediação e solução de conflitos sociais e interpessoais, nossos juízes e tribunais, com as exceções que confirmam a regra, guiam-se pelos valores prevalentes em uma sociedade de classes profundamente estratificada, como a nossa.

É bem verdade que os progressos verificados na sociedade civil, fruto das lutas e das conquistas dos movimentos sociais – por exemplo, em favor das mulheres e negros, do meio-ambiente e em matéria de comportamento – refletem-se também no Judiciário que, frequentemente, adota posições favoráveis e afirmativas nestes temas.

De qualquer forma, a inclinação de classe das instituições judiciais, mais que a eventual posição individual de seus membros, foi o fator determinante da tolerância, quando não do apoio dos Tribunais Superiores à escalada do neofascismo no país – em suas duas versões gêmeas, lavajatismo e bolsonarismo.

Assim é que, quanto à primeira, suas tropelias e ilegalidades manifestas – devidamente dissecadas na primeira parte deste artigo – foram contestadas em nome da “excepcionalidade” da situação, por se revelarem funcionais, tanto para o alijamento de governos e políticos indesejados, quanto para a manutenção do prestígio subitamente granjeado pelo sistema judicial, mercê da intensa exposição midiática da famosa operação.

E se passou o mesmo no que toca à outra face da moeda neofascista: malgrado o Boçal não fosse o candidato ideal das classes dominantes, e de sua ramificação no sistema de justiça, a opção por ele em 2018 foi notória – em nome da necessidade prioritária de derrotar o candidato de centro-esquerda, consumando o golpe gestado cinco anos antes. Neste particular, deve-se destacar que os pendores autoritários do então candidato à Presidência, manifestados sem disfarces antes, durante e depois de sua eleição e assunção ao Planalto, foram sempre relevados pelas autoproclamadas elites – nelas incluída a alta burocracia judicial – na vã esperança de sua domesticação pelos rituais do exercício do poder. E, afinal de contas, o fundamental ele lhes garantia – o aprofundamento da agenda neoliberal implementada no governo-tampão de Michel Temer.

No entanto, este misto de tolerância e de apoio, às vezes velado, às vezes explícito, ao seu (des) governo, foi-se desvanecendo pela conjugação de alguns fatores. Primeiro, os efeitos manifestamente deletérios de suas políticas, em especial no que se refere às criminosas ações e omissões relacionadas à pandemia – responsáveis por milhares de mortes; e ao meio ambiente – notadamente os incêndios no Pantanal e o aumento desbragado do desmatamento na Amazônia.

E também, at last but not least, o clima de instabilidade política e econômica causado pelas crescentes ameaças golpistas proferidas pelo Boçal, que terminaram acarretando sua perda de sustentação política junto às classes dominantes, ou importantes frações das mesmas. E neste novo quadro político que se foi desenhando, o aumento da frequência e intensidade dos ataques dirigidos pelo chefe do Executivo às instituições terminou por, finalmente, acender a luz vermelha no Supremo e no Tribunal Superior Eleitoral – determinando-os a reagir, em nome de sua sobrevivência ameaçada, adotando as bem-vindas providências já referidas.

Esta trajetória da cúpula do sistema de justiça, como partícipe relevante dos movimentos políticos ocorridos recentemente – abandonando sua posição inicial legitimadora das manobras autoritárias, para assumir postura firme no enfrentamento das investidas neofascistas – deixa lições que convém destacar. A primeira e necessária reflexão a fazer é de que, mesmo derrotada, a ameaça fascista persiste viva, buscando permanentemente rearticular suas forças, não apenas dentro, mas também de fora do país – pois nunca é demais lembrar que o neofascismo brasileiro faz parte da internacional da extrema direita que assola o mundo.

Por isso, revela-se fundamental, para a sobrevivência e revitalização de nossa democracia, preservar a disposição das Cortes Superiores em enfrentar seus ataques. Neste sentido, tem sido muito importante persistir na condução prioritária dos inquéritos e processos criminais instaurados contra os participantes, apoiadores e financiadores da tentativa de putsh de 8 de janeiro. E, da mesma forma, manter as investigações em andamento contra o próprio Boçal e seus asseclas diretos – não apenas por suas ações e omissões golpistas, como também sobre as tentativas canhestras de apropriação de joias e objetos valiosos, e de falsificação de seus documentos de vacinação, tudo por motivos ainda obscuros.

Nesta senda, impõe-se igualmente ao novo governo a continuidade do relacionamento estabelecido, dentre marcos republicanos, com o Supremo e demais Tribunais Superiores. Mas, para proveito não apenas desta relação institucional, mas sobretudo da sociedade brasileira, deve-se aproveitar a reação legalista da cúpula do Judiciário, para manter o sistema de justiça no leito de que não se deveria ter desbordado. (Publicado em Sul 21 em 28 de maio de 2023)

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e Revisão: Celia Bartone

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