Trump, em seu primeiro mandato, havia tentado mudar as regras e o jogo. Mas agora quer mais, muito mais.

Há um mês, Trump anunciou uma forte elevação das tarifas para os produtos importados pelos EUA. Em realidade, tratava-se da retomada do processo anunciado no primeiro trimestre deste ano, e que foi suspenso na maioria dos casos. Agora, o governo dos EUA anunciava que as tarifas entrariam em vigor em 1º de agosto, a menos que os países chegassem a acordos com os EUA. As tarifas eram diferenciadas por países e regiões, maiores no caso de países asiáticos, menores para a América Latina, intermediárias no caso da Europa. A justificativa da elevação tarifária estava no enorme déficit comercial dos EUA, e na tentativa, no discurso de Trump, de retomar o dinamismo da indústria manufatureira nos EUA, protegendo seu mercado nacional e ganhando espaço para produtos estadunidenses no mundo.

Vale observar que o tal “enorme déficit” comercial dos EUA aparece com a expansão da chamada “globalização”, com a forte abertura comercial e financeira que se estruturou à escala mundial impulsionada pelos próprios EUA a partir da última década do século passado. Ela foi resultante de enorme pressão dos EUA, mas também de aliados como União Europeia e Japão.

No âmbito comercial, desse projeto de abertura resultou a Organização Mundial do Comércio (OMC) e suas regras de abertura multilateral do comércio internacional. Na área financeira, a pressão dos grandes grupos financeiros contou com a forte ajuda das instituições financeiras multilaterais, como o Banco Mundial e o FMI, e de instituições como a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), uma organização criada no imediato pós-guerra para a recuperação das economias europeias destruídas pela guerra, tornada depois uma espécie de organização permanente hegemonizada exatamente pelos EUA, Canadá, países europeus e Japão para emanar regras de funcionamento econômico para os países membros (que foram se ampliando) e demais (países podem se associar a regras específicas da OCDE).

A OCDE se mostrou desde o final do século passado como um importante bastião da liberalização financeira, emanando muitas regras a serem seguidas por membros e parceiros, e sendo tão radical em sua proposta liberalizante que mesmo algumas de suas tentativas (como o Acordo Multilateral de Investimentos, por exemplo) acabaram derrubadas no próprio interior da organização depois de campanhas de mobilização de ruas dentro dos países membros. Ainda assim andaram (e muito) a liberalização financeira e a comercial, nesse período. E andaram com a ajuda dos instrumentos multilaterais, negociadas entre poucos, mas valendo para muitos países. Os EUA, pelo menos até a primeira década do novo século, foi o grande beneficiado, evidentemente, das regras que ajudou a impulsionar no cenário global.

Trump, em seu primeiro mandato, havia tentado mudar as regras e o jogo. Começou parcialmente o novo jogo, travando o funcionamento da OMC, por exemplo. Mas agora quer mais, muito mais. E começou com uma gigantesca vitória: essa discussão tarifária desde o começo de seu governo desmontou o sistema multilateral de comércio. A OMC caiu no esquecimento, e todos estão sendo obrigados a negociações bilaterais com os EUA. Trump está impondo o fim do sistema multilateral de comércio, na prática. E isso abre caminho para uma provável segunda vitória, que vamos ver ao longo dos próximos meses. Porque bilateralmente, apenas a China tem condições de enfrentar comercial e financeiramente os EUA (como de fato fez, com sucesso, nas suas próprias negociações com os EUA), os outros todos terão que fazer concessões em negociações bilaterais com os EUA, já que não têm condições de endurecer o diálogo.

A única possibilidade de ter um jogo mais equilibrado seria levar os EUA para a negociação multilateral, mas para isso a grande maioria dos países, ou especialmente os mais importantes, teriam que agir juntos, combinar um trabalho consorciado no processo de negociação. Prevaleceu, entretanto, a visão de alguns setores que exportam para os EUA e que veem na possibilidade de acordos bilaterais, com enormes concessões, uma forma de salvar a sua pele.

O caso mais evidente, acabamos de ver agora, foi o da União Europeia. Em troca de reduzir um pouco as tarifas de produtos industriais europeus exportados para o mercado estadunidense, ela fez enormes concessões para a compra de energia (petróleo e gás), produtos agrícolas e material militar pela UE. A UE aceita uma tarifa geral de cerca de 15% para seus produtos industriais (aí incluídos carros – o grande ponto de pressão do setor industrial alemão, que queria salvar sua pele –, mas não o aço, que passa a ser exportado em um sistema de cotas, ou seja, sujeito a limite quantitativo).

Assim, os europeus pagarão mais do que os 10% vigentes até aqui, mas menos do que os 20% anunciados no início de julho (que, no calor da negociação, Trump chegou a ameaçar subir a 30%). Mas entregará boa parte de sua indústria de material militar (alguns países têm importantes indústrias neste setor) e atingirá os produtores agrícolas europeus (é possível que com esse golpe, aumente ainda mais na Europa a resistência, por exemplo, contra o acordo Mercosul-UE, que prevê a entrada de produtos agrícolas do Mercosul no mercado europeu, lembrando que alguns desses produtos, como soja, algodão e carnes, entre outros, também são exportados pelos EUA, que agora garantem um mercado cativo).

Além disso, o compromisso do consumo de insumos energéticos dos EUA pode afetar o processo de transição energética na UE. Assim como os lobbies para chegar a esse acordo e fazer as concessões por parte da União Europeia foram setoriais e tiveram diferenças nacionais, é possível que a resistência ao acordo firmado pela Comissão Europeia com os EUA também assuma características nacionais. Vale lembrar que comércio, pela institucionalidade europeia, é um tema definido comunitariamente, ou seja, pela Comissão Europeia, não passando pelos parlamentos nacionais. Mas a resistência deve ser nacional, e isso vai acabar se refletindo no Parlamento Europeu e nas relações dentro da UE. A ver se a própria UE resiste às tensões derivadas dessa negociação.

No caso do Brasil, as coisas em julho vieram complicadas desde o início. Na carta para o Brasil anunciando o provável aumento de tarifas, Trump, além de uma inverdade (a carta se refere a um déficit de comércio para os EUA nas relações com o Brasil que não existe desde o fim da primeira década deste século. O Brasil é um dos poucos países deficitários em seu comércio com os EUA há mais de 15 anos) mistura o tema comercial (no qual todos os países foram envolvidos) com o tema político (uma anistia para o ex-presidente Bolsonaro), o que evidentemente, pela institucionalidade política da democracia brasileira (a independência entre os poderes), está fora da alçada do Executivo Federal, que é quem negocia sobre comércio. Assim, o governo brasileiro já sai em uma situação bastante negativa, uma vez que, de cara, não tem como atender a esta demanda do presidente dos EUA.

Mais do que isso, o quadro em que se desenvolvem as negociações (bilateralmente, como vimos anteriormente) é totalmente desfavorável para os países que negociam com os EUA. Só para pegar um outro exemplo recente, a Indonésia (por sinal um dos países membros do BRICS): esse país acabou aceitando reduzir a tarifa de 99% dos produtos importados dos EUA a zero, aí incluídos produtos industriais e tecnológicos, admitindo uma tarifa de 19% por seus produtos exportados para os EUA; comprometeu-se a ampliar a importação de produtos agrícolas, de energia e de aviação (Boeing) dos EUA; e a garantir o fornecimento de minerais críticos estratégicos aos EUA.

Desta forma, nas regras atuais impostas pelos EUA (negociação bilateral entre economias totalmente assimétricas), é praticamente impossível esperar algum “final feliz” desse filme. Se comercialmente já era assim, com o aditivo do imbróglio político isso se complica ainda mais. Além disso, há alguns setores produtivos internos muito dispostos a tentar salvar a própria pele, e outros, políticos, mostrando de antemão pouca unidade com o governo para confrontar as posições dos EUA. Os próximos capítulos podem ser bem conturbados.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  Revisão: Celia Bartone
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