A população é refém no teatro do fascismo. Outro mundo é possível: a esfera pública não precisa ser espelho da selva capitalista.

A grande transformação: As origens políticas e econômicas de nossa época é um livro publicado em 1944 nos Estados Unidos e, no ano seguinte, na Inglaterra nos estertores da II Guerra: a editora Contraponto lança-o em português, em 2021. Na obra, o filósofo e historiador Karl Polanyi (1886 Áustria – 1964 Canadá) dedica algumas páginas ao fascismo. A semelhança com o que assistimos não é coincidência. Auxilia na compreensão do modus operandi da extrema direita, no tempo e no espaço. Revelar seus estratagemas, artimanhas e contradições revigora a batalha pela democracia.
O capítulo “A história na engrenagem da mudança social” traz um apanhado do assunto. “A solução fascista para o impasse do capitalismo liberal pode ser descrita como uma reforma da economia de mercado, feita à custa da extirpação de todas as instituições democráticas, tanto no domínio político quanto industrial”. O objetivo é sempre revitalizar o sistema econômico, em risco de se esfacelar.
“As pessoas seriam submetidas a uma reeducação destinada a desnaturalizar o indivíduo e a torná-lo incapaz de funcionar como a unidade responsável do corpo político”. O movimento propunha uma lavagem cerebral incutindo-lhe “os dogmas de uma religião política que nega a ideia de fraternidade entre os homens em todas as suas formas”. Pressupõe um ato de conversão em massa, imposto aos recalcitrantes pela coerção social e a violência. Trata-se da projeção distópica de um novo homem.
Autoajuda neoliberal
A desconstrução da individualidade como pilar do corpo político significa um rompimento com os valores da democracia, a qual se baseia no conceito de indivíduos informados e capazes de juízos autônomos frente à realidade. Coisa que o oligopólio da mídia impede ao pasteurizar as mentes e implodir o fundamento ético da sociedade humanista. Sem a consciência, pessoas são manietadas feito gado. Os meios de comunicação só tendem a aceitar o regime constitucional na propaganda.
Em concordância com o liberalismo econômico (“liberismo”), os fasci na Itália dos anos vinte e os nazi na Alemanha dos trinta acionam a despersonalização com a imersão dos indivíduos no coletivo uniformizado por trajes, gestos, palavras e emoções para: (a) normalizar a hostilidade às alteridades de raça, gênero, credo, ideologia; e (b) trocar a identidade individual pelo sentimento de pertença a um grupo de fanatismo. Trata-se da iniciação em uma seita político-religiosa dogmática, excludente.
A estética da camisa (marrom na Alemanha, preta na Itália, azul na Espanha) circunscreve o arranjo orgânico que exibe uma força paramilitar para atrair a classe média e legitimar o barbarismo das “gentes de bem”, a exemplo de membros da Ku Klux Klan. Hoje o Tea Party desfralda a bandeira confederada, símbolo do supremacismo racial (EUA). A crítica ao “sistema” (a política, os partidos) encobre a demagogia que dinamita a legislação vigente para atender o mercado autorregulado, cujo simulacro se acha nas narrativas de autoajuda que monetizam o desamparo sob o neoliberalismo.
A vez de Juan Guaidó
As insatisfações são canalizadas para longe dos donos do poder. A opção é pelo estímulo a afetos de rejeição à institucionalidade. A pantomima se estende às autoridades que fingem ter sido obrigadas a tomar decisões antipáticas. Tipo os vis acordos de Donald Trump fechados com a União Europeia, o Reino Unido e o Japão recentemente. Para o primeiro-ministro francês, 27 de julho foi “um dia sombrio de submissão”. A França dissimula um temor napoleônico da Rússia para entregar os anéis e alguns dedos. La noblesse oblige o fingimento para disfarçar a rendição à potência da América.
Os ataques metódicos às instituições, agora, vêm de fora enfraquecendo órgãos de defesa do Estado de direito. O objetivo é colocar de joelhos as organizações multilaterais. Tarifaços táticos sinalizam o cerco ao comércio exterior do país e estimulam o lawfare à liderança do presidente Lula. O Brasil está na vanguarda política da resiliência ao arbítrio trumpista. O Nobel de Economia Joseph Stiglitz elogia a coragem da posição. “Que outros líderes de países grandes e pequenos demonstrem bravura semelhante diante do bullying do mais poderoso país do mundo” (A Terra é Redonda, 10 de agosto).
O contexto tem um protagonista em nome do clã miliciano para dar visibilidade à oposição interna. Não falta vira-lata a serviço de neocolonizadores. Cada conjuntura apresenta um Juan Guaidó. Ao traidor de plantão não importa o prejuízo causado às empresas e aos empregos. A trama não mira apenas a libertação do covarde golpista, taoquei, mas frear uma erosão político-econômica unipolar. Rentistas e monopólios tecnológicos são os mestres do jogo de xadrez; os exportadores são peões.
Um boné humilhante
“O movimento fascista nascente colocou-se a serviço da questão nacional. Não sobreviveria sem ir nessa direção. Mas fez do item um trampolim. Noutras vezes, adotou discurso pacifista e isolacionista”; qual o apelo à paz na Faixa de Gaza e a saída do Clube de Paris – portanto, da sustentabilidade. Para não citar posturas “não nacionalistas, a ponto de praticar a traição”. Karl Polanyi menciona o oficial militar que chefia o governo colaboracionista da Noruega, na ocupação nazista: “Quisling pode ter sido o nome de um bom fascista, mas não foi o de um bom patriota”. Vale para o governador de São Paulo que usou o humilhante boné Make America Great Again (MAGA), contra os interesses nacionais.
A soberba imperial expõe os entreguistas. O inelegível ofereceu a Elon Musk, que sequer precisou pedir, o metal de transição com 98% das reservas mundiais na Amazônia. Leve e resistente, o nióbio tem aplicação nas indústrias aeroespacial, automotiva e de tubulações. É ouro para a alta tecnologia. Coube ao ex-operário defender as riquezas da União do entreguismo. A contestação dos EUA ao comércio global e ao princípio de não intervenção no mercado derruba argumentos pseudo técnicos da ortodoxia econômica. Entre a acumulação e a democracia, o capital não vacila como o Estadão.
Caducou o tempo do Consenso de Washington (1989); abre-se o espaço à Truculência de Washington (2025). A marcha em várias oportunidades conduz à simulação, sendo fascista sobretudo na forma à medida em que bandos de civis tidos por irresponsáveis (“coitados”, na interpretação desdenhosa do palhaço sociopata) são manipulados pela conivência de burocratas em cargos de proa. Ocorre nos momentos em que a filosofia antidemocrática já existe, mas ainda não tem peso político decisivo.
A soberania nacional
A população é tomada de refém para o sequestro da soberania nacional, enquanto os vendilhões se contentam com o papel subalterno de marionetes no teatro do fascismo. Outro mundo é possível, a esfera pública não precisa ser espelho da selva capitalista. Outrora as 15 milhões de vítimas do Covid-19 foram abandonadas; a indústria farmacêutica negou-se quebrar a patente das vacinas. Ora, a cidadania in totum é agredida e, a nação, rebaixada à condição de colônia pelo perfil gângster do capitalismo ianque com viés fascista. Prevaleça o sentimento de uma pátria republicana.
Outro mundo é possível, e necessário. A esfera pública não precisa ser espelho da selva capitalista. A cooperação pode sobrepujar a cobiça. A utopia nasce com os indivíduos insubstituíveis, não com as “elites”. Inspirada na Revolução do Haiti (1791), a Conjuração Baiana (1798) continua a ecoar. Da periferia vem o som de tambores da liberdade e o colorido da igualdade e da solidariedade. De progressistas chegam propostas de boicote e articulações internacionais de proteção da dignidade. A luta de classes acirra-se com caráter geopolítico na contemporaneidade. A terceira via é capitulação.
Como no poema de Carlos Drummond de Andrade, dedicado ao homem do povo Charlie Chaplin: “Falam por mim os abandonados da justiça, os simples de coração / os párias, os deficientes, os falidos / Falam os tocos de vela, que comes na penúria / cada troço, cada objeto do sótão, quanto mais obscuros mais falam”. – Os Brics representam um lado dessa escuta contra os negacionismos.
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Ilustração: Mihai Cauli
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